2. Início da Personalidade Jurídica

1. A Teoria Natalista e a Figura Central do Nascituro

A definição do momento exato em que um ser humano adquire personalidade jurídica é uma das questões fundamentais do Direito Civil. Para responder a essa pergunta, diversas correntes doutrinárias surgiram, cada uma com seus próprios fundamentos e interpretações da lei. A primeira e mais tradicional delas é a Teoria Natalista.

Conforme a primeira parte do Artigo 2º do Código Civil, a Teoria Natalista estabelece que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida". O critério é claro e objetivo: a aquisição de personalidade está diretamente atrelada a dois eventos cumulativos: o NASCIMENTO e a existência de VIDA, ainda que por um instante. Importante ressaltar que o registro de nascimento, embora obrigatório, possui natureza meramente declaratória, ou seja, ele apenas formaliza uma personalidade que já existe desde o primeiro sopro de vida, não a constitui.

A partir desse critério, a doutrina distingue duas figuras importantes: o neomorto e o natimorto.

  • O neomorto é aquele que nasce com vida, adquire personalidade jurídica e, logo em seguida, falece. Mesmo que tenha vivido por apenas alguns segundos, ele foi sujeito de direitos e obrigações.
  • O NATIMORTO, por outro lado, é aquele que já nasce sem vida e, sob a ótica estrita da Teoria Natalista, nunca chegou a adquirir personalidade.

Contudo, a simplicidade dessa teoria é desafiada pela segunda parte do mesmo Artigo 2º do Código Civil, que introduz uma figura central para todo o debate: o NASCITURO. Definido como "o ser que foi CONCEBIDO, mas que ainda NÃO NASCEU" — ou seja, o bebê que ainda está no ventre materno —, o nascituro recebe uma proteção especial da lei. O texto legal afirma que "a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

Essa disposição cria uma aparente contradição: se a personalidade só se inicia com o nascimento com vida, como o nascituro, que ainda não nasceu, pode ter seus direitos resguardados desde a concepção? É justamente essa dualidade na redação do dispositivo que abre espaço para o surgimento de outras teorias que buscam harmonizar o ordenamento jurídico e oferecer uma proteção mais ampla à vida intrauterina.


2. A Teoria da Personalidade Condicional: Uma Abordagem Intermediária

Para tentar harmonizar a aparente contradição do Artigo 2º do Código Civil, surgiu a Teoria da PERSONALIDADE CONDICIONAL (também conhecida como teoria da personalidade condicionada). Essa corrente, defendida por juristas clássicos como Washington de Barros e Serpa Lopes, propõe uma solução intermediária: a personalidade jurídica se iniciaria no momento da CONCEPÇÃO, mas sua plena EFICÁCIA estaria subordinada a uma condição suspensiva — o NASCIMENTO COM VIDA.

Em outras palavras, o nascituro já seria detentor de uma personalidade, mas esta se encontraria em um estado de latência, aguardando a ocorrência do nascimento para se consolidar plenamente. Se o nascimento com vida não ocorrer, a personalidade que estava "condicionada" se resolve, e considera-se que nunca existiu para efeitos jurídicos plenos.

A jurista Maria Helena Diniz aprofundou essa teoria ao distinguir duas espécies de personalidade:

  • Personalidade FORMAL: Adquirida desde a concepção, estaria ligada aos DIREITOS DA PERSONALIDADE, como o direito à vida, à integridade física e à imagem. Isso explicaria por que o ordenamento jurídico protege o nascituro mesmo antes do nascimento.
  • Personalidade MATERIAL: Seria adquirida apenas com o nascimento com vida. Esta, sim, estaria relacionada à titularidade de DIREITOS PATRIMONIAIS, como o direito de herdar ou receber doações, que só se efetivariam após o cumprimento da condição.

Apesar de seu esforço conciliador, a Teoria da Personalidade Condicional é frequentemente criticada por sua complexidade e por criar uma espécie de "personalidade em estado de espera". Por ser considerada confusa e não oferecer uma resposta definitiva, essa abordagem possui menor adesão na doutrina contemporânea, que buscou uma solução mais direta para a questão.


3. A Teoria Concepcionista: A Visão Moderna e Seus Fundamentos

Em contraposição às abordagens anteriores, a Teoria CONCEPCIONISTA se consolidou como a visão dominante na doutrina contemporânea, oferecendo uma resposta mais clara e protetiva sobre o início da personalidade jurídica. Para essa corrente, a personalidade da pessoa natural começa no exato momento da concepção, de forma incondicional.

Os defensores dessa teoria argumentam que a redação do Artigo 2º do Código Civil deve passar por uma releitura.

  • A primeira parte do artigo, que menciona o "NASCIMENTO COM VIDA", não seria o marco inicial da personalidade, mas sim o momento a partir do qual a pessoa adquire a CAPACIDADE PLENA de exercer pessoalmente seus direitos, especialmente os de natureza patrimonial.
  • A segunda parte, que protege os direitos do nascituro desde a CONCEPÇÃO, é vista como a confirmação de que ele já é, de fato, uma pessoa TITULAR DE DIREITOS.

A grande diferença em relação à Teoria Condicional é a ausência de qualquer condição suspensiva. A personalidade não é uma mera expectativa de direito que depende do nascimento; ela é adquirida de forma plena e definitiva a partir do momento em que o ser é concebido.

Essa visão é amplamente majoritária entre os juristas modernos, incluindo nomes de peso como Francisco Amaral, Silmara Chinellato, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald, Pablo Stolze e Flávio Tartuce. Como veremos, essa teoria encontra forte respaldo não apenas na doutrina, mas em diversos dispositivos legais e na jurisprudência dos tribunais superiores.


4. Argumentos Jurídicos que Consolidam a Teoria Concepcionista

A força da Teoria Concepcionista não reside apenas em sua clareza teórica, mas também nos inúmeros argumentos extraídos do próprio ordenamento jurídico brasileiro, que demonstram uma clara proteção ao nascituro como sujeito de direitos. Esses fundamentos vão muito além do Código Civil, espalhando-se por diversas outras leis.

Dentro do próprio Código Civil, vários artigos sustentam essa visão:

  • Reconhecimento de PATERNIDADE (Art. 1.609, parágrafo único): A lei permite expressamente que o reconhecimento de um filho preceda o seu nascimento. Para os concepcionistas, essa possibilidade só faz sentido se o nascituro já possuir personalidade jurídica para ser reconhecido como filho.
  • Direito de HERDAR (Art. 1.798): O dispositivo legitima para suceder as pessoas já concebidas no momento da abertura da sucessão. Se o nascituro pode ser herdeiro, ele necessariamente deve ser considerado uma pessoa titular de direitos.
  • Nomeação de CURADOR (Art. 1.779): O Código prevê a nomeação de um curador para o nascituro em situações específicas, como o falecimento do pai. A figura do curador existe para proteger os interesses de um incapaz, o que pressupõe que o nascituro já é um sujeito de direitos.
  • Capacidade para Receber DOAÇÃO (Art. 542): O nascituro pode ser donatário, ou seja, pode receber doações, bastando a aceitação de seu representante legal. Essa capacidade de figurar em um contrato como beneficiário reforça a tese de que ele possui personalidade jurídica.

Além do Código Civil, outros diplomas legais corroboram a Teoria Concepcionista:

  • Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.069/90): O Artigo 8º assegura ao nascituro a garantia de um "NASCIMENTO SADIO e harmonioso", demonstrando uma proteção legal que antecede o nascimento.
  • Código Penal: A criminalização do ABORTO está inserida no capítulo de "crimes contra a pessoa". Essa classificação legal indica que o ordenamento penal considera o nascituro como uma pessoa, cuja vida merece tutela.
  • Lei de Alimentos Gravídicos (Lei nº 11.804/08): Esta lei permite que a gestante pleiteie alimentos para cobrir as despesas da gravidez, reconhecendo que o nascituro tem direito a uma GESTAÇÃO SAUDÁVEL, o que, indiretamente, o trata como sujeito de direitos.

Esses argumentos, em conjunto, formam uma base sólida que demonstra a afeição do legislador brasileiro pela Teoria Concepcionista, tratando o nascituro não como uma mera expectativa, mas como uma pessoa desde o momento da concepção.


5. O Posicionamento da Doutrina e da Jurisprudência (STJ e CJF)

A consolidação da Teoria Concepcionista no ordenamento jurídico brasileiro é reforçada não apenas pela legislação, mas também pelo posicionamento firme da doutrina majoritária e da jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho da Justiça Federal (CJF).

O STJ, em diversas oportunidades, manifestou-se em favor da proteção integral ao nascituro. Um dos julgados mais emblemáticos é o REsp 931.556 – RS, no qual o tribunal reconheceu que o nascituro tem direito à reparação por DANO MORAL. No caso concreto, o pai do bebê faleceu em um acidente de trabalho durante a gestação, e o STJ entendeu que a criança, mesmo antes de nascer, sofreu uma violação em seus direitos da personalidade, pois foi privada do direito de conhecer e conviver com seu genitor.

Mais recentemente, no REsp nº 1.415.727 – SC, julgado em 2014, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão foi ainda mais explícito. Em seu voto, afirmou:

"Com efeito, ao que parece, o ordenamento jurídico como um todo – e não apenas o Código Civil de 2002 – alinhou-se mais à teoria concepcionista para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea [...] Por outro ângulo, cumpre frisar que as teorias mais restritivas dos direitos do nascituro – natalista e da personalidade condicional – fincam raízes na ordem jurídica superada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002."

Essa decisão deixa claro que, para o STJ, as teorias Natalista e Condicional são consideradas ultrapassadas e incompatíveis com o sistema jurídico atual, que se alinha de forma robusta à proteção do nascituro desde a concepção.

A doutrina, por sua vez, manifesta seu entendimento por meio dos enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal (CJF). Esses enunciados, embora não tenham força de lei, representam o pensamento dos maiores estudiosos de Direito Civil do país. O Enunciado nº 01 do CJF é um marco nesse sentido:

"A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o NATIMORTO no que concerne aos DIREITOS DA PERSONALIDADE, tais como: nome, imagem e sepultura."

Este enunciado, de clara linhagem concepcionista, estende a proteção aos direitos da personalidade até mesmo ao natimorto (aquele que nasce sem vida), garantindo-lhe dignidade por meio de direitos como nome e sepultura. Ao fazê-lo, a doutrina reforça que a personalidade jurídica não pode estar condicionada ao nascimento com vida, solidificando a Teoria Concepcionista como a que melhor responde às demandas de proteção da pessoa humana em nosso sistema legal.


Entendendo a Abordagem das Bancas

  1. Literalidade da Lei (Provas Objetivas): Em uma prova de múltipla escolha, uma alternativa que afirme que "a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida" deve ser considerada correta. Isso ocorre porque a assertiva reflete a redação literal do Art. 2º do Código Civil, um dispositivo plenamente vigente e que serve como base para a Teoria Natalista.

  2. Visão Doutrinária (Provas Objetivas e Discursivas): De forma mais elaborada, uma questão pode afirmar que "a doutrina contemporânea adota a Teoria Concepcionista para explicar o início da personalidade". Essa alternativa também estaria correta, pois, embora o Código Civil adote formalmente a Teoria Natalista, o entendimento doutrinário moderno, em sua maioria, inclina-se para a Concepcionista, que reconhece a proteção de direitos desde a concepção.

  3. Análise Completa (Provas Discursivas e Orais): Já em provas abertas ou exames orais, a expectativa é de uma resposta completa e aprofundada. Questionado sobre "quando começa a personalidade da pessoa natural no ordenamento jurídico brasileiro", o candidato bem-preparado deve demonstrar um vasto conhecimento, abordando as três principais teorias (Natalista, Concepcionista e da Personalidade Condicional), citar a regra do Art. 2º do Código Civil e, idealmente, mencionar a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema.

Com essa mentalidade prática em mente, que une a letra da lei, a doutrina e a jurisprudência, avançamos para o tema central deste artigo: o fim da personalidade da pessoa natural, explorando suas nuances e a forma como são cobradas nos mais diversos certames.


Resumo

Subtópico Pontos principais Conceitos-chave e definições Dados e estatísticas relevantes Citações e referências importantes
A Teoria Natalista e a Figura Central do Nascituro - A personalidade jurídica começa com o nascimento com vida. - O registro de nascimento é um ato declaratório. - Diferenciação entre neomorto (adquire personalidade) e natimorto (não adquire). - A lei protege os direitos do nascituro desde a concepção, o que gera o debate teórico. Nascituro: 'O ser que foi concebido, mas que ainda não nasceu.' Neomorto: 'Aquele que nasce com vida, respira, e falece em seguida.' Natimorto: 'Aquele que nasce sem vida.' Não aplicável. 'Art. 2º do Código Civil.'
A Teoria da Personalidade Condicional - A personalidade se inicia na concepção, mas sua eficácia está sujeita à condição do nascimento com vida. - É uma teoria intermediária, mas considerada confusa e pouco adotada. - Distingue personalidade formal (direitos da personalidade, desde a concepção) e material (direitos patrimoniais, após o nascimento). Personalidade Formal: 'Adquirida na concepção, ligada aos direitos da personalidade.' Personalidade Material: 'Adquirida com o nascimento com vida, ligada aos direitos patrimoniais.' Não aplicável. 'Adeptos: Washington de Barros, Serpa Lopes.' 'Intérprete: Maria Helena Diniz.'
A Teoria Concepcionista - A personalidade jurídica começa no momento da concepção, de forma incondicional. - É a teoria majoritária na doutrina contemporânea. - Propõe uma releitura do Art. 2º do Código Civil, afirmando que o nascimento com vida define a capacidade de exercício, não o início da personalidade. Teoria Concepcionista: 'A personalidade da pessoa natural começa da concepção, sem subordinação a qualquer condição.' Não aplicável. 'Adeptos: Francisco Amaral, Silmara Chinellato, Cristiano Chaves, Flávio Tartuce, entre outros.'
Argumentos Jurídicos da Teoria Concepcionista - O nascituro pode ter paternidade reconhecida, ser herdeiro, receber doações e ter um curador nomeado. - O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante ao nascituro o direito de nascer saudável. - O Código Penal tipifica o aborto como crime contra a pessoa. - A Lei de Alimentos Gravídicos protege o nascituro. Não aplicável. Não aplicável. 'Art. 1.609, p.ú, CC (Paternidade)' 'Art. 1.798, CC (Herança)' 'Art. 1.779, CC (Curador)' 'Art. 542, CC (Doação)' 'Lei nº 8.069/90, art. 8º (ECA)' 'Lei nº 11.804/08 (Alimentos Gravídicos)'
Posicionamento da Doutrina e Jurisprudência - O STJ inclina-se majoritariamente pela Teoria Concepcionista. - O nascituro é titular de direitos da personalidade e pode receber reparação por dano moral. - As teorias natalista e condicional são vistas como superadas pela Constituição de 1988. - O Enunciado 01 do CJF estende a proteção dos direitos da personalidade (nome, imagem, sepultura) ao natimorto. Enunciado do CJF: 'Manifestação doutrinária aprovada por estudiosos em Jornadas de Direito Civil, com forte valor de interpretação.' Não aplicável. 'REsp 931.556 – RS (Dano moral ao nascituro)' 'REsp nº 1.415.727 – SC (Voto do Min. Luis Felipe Salomão)' 'Enunciado nº 01, CJF: "A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade..."'

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há 2 semanas
Matéria: Direito Civil
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