1. Introdução: O Contexto em Corinto e a Crise da Divisão

A igreja de Corinto, embora vibrante, era uma comunidade complexa, marcada por sérios desafios morais, espirituais e doutrinários. No entanto, um dos problemas mais corrosivos que ameaçava sua integridade era um profundo espírito faccioso. Os membros viviam em um estado de constante tensão interna, divididos em partidos que se formavam em torno de personalidades proeminentes da igreja primitiva: alguns se declaravam seguidores de Paulo, o fundador da comunidade; outros, de Apolo, seu eloquente sucessor; e ainda outros, de Pedro, o apóstolo de destaque no cristianismo judaico. Havia também um quarto grupo, que se intitulava "de Cristo", sobre o qual se discutirá com mais detalhes posteriormente.

Essa fragmentação não era um debate teológico saudável, mas uma fonte de brigas e rupturas. O apóstolo Paulo, ao identificar o problema no início de sua carta, utiliza a palavra grega schisma (origem do termo "cisma" em português), que descreve uma separação ou rasgo. A imagem que ele evoca é a de uma veste que foi esgarçada, um tecido único que se rompeu devido à força de partes que puxam em direções opostas. O tecido da igreja de Corinto estava, portanto, roto, e essa desunião representava uma ameaça direta ao testemunho do Evangelho.

Consciente da gravidade da situação, Paulo dedica os quatro primeiros capítulos de sua carta a tratar dessa questão. Ele já havia apresentado um primeiro argumento teológico poderoso: o contraste entre a sabedoria humana e a sabedoria divina. Enquanto os coríntios, imersos na cultura grega que valorizava a retórica e a filosofia, usavam esses critérios para classificar e exaltar seus pregadores preferidos, Paulo afirmava que tal sabedoria é inútil para conhecer a Deus. A verdadeira sabedoria divina, segundo ele, manifesta-se naquilo que o mundo considera loucura: a mensagem de Cristo crucificado.

Após estabelecer essa base, Paulo introduz um segundo argumento, que se aprofunda na própria identidade da igreja. No trecho de 1 Coríntios 1:26-31, ele se volta para a composição da própria comunidade de Corinto para demonstrar, de forma contundente, que o orgulho e a exaltação de figuras humanas são totalmente contrários ao método e ao propósito do chamado de Deus.


2. "Considerem a Vocação de Vocês": Quem Deus Não Chamou

Dando continuidade ao seu argumento, Paulo desfere um golpe retórico ao convidar os próprios coríntios a se tornarem a prova viva de seu ponto. Ele não apresenta uma teoria abstrata, mas os chama a uma autoanálise, a uma reflexão sobre a própria origem de sua comunidade. O comando é direto e pessoal:

“Irmãos, considerem a vocação de vocês: não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento.” (1 Coríntios 1:26)

Ao dizer "considerem a vocação", Paulo pede que eles observem três aspectos fundamentais: a maneira como Deus os chamou (através da pregação simples da cruz), a pessoa que Deus usou (o próprio Paulo, que não se apresentava com eloquência sofisticada) e, crucialmente, o tipo de pessoas que eles mesmos eram quando foram alcançados pelo Evangelho. É um convite para que olhem ao redor, para a composição de sua própria igreja, e constatem uma realidade inegável.

Em seguida, ele enumera exatamente os perfis que a cultura greco-romana e, por consequência, os coríntios, tanto admiravam — e que, paradoxalmente, estavam em grande parte ausentes de seu meio:

  • Sábios segundo a carne: Esta categoria incluía os intelectuais da época — filósofos, escribas, sofistas e oradores eloquentes. Eram as mentes brilhantes que impressionavam o mundo com sua sapiência e retórica. Paulo desafia os coríntios a contarem quantos gigantes intelectuais faziam parte de sua congregação. A resposta seria um silêncio constrangedor.

  • Poderosos: Aqui, a referência é aos detentores do poder político e financeiro. Os romanos, em particular, reverenciavam o poder, manifestado em seus governadores, generais e na figura do próprio César. Paulo pergunta: quantos governantes, magistrados ou homens de grande influência política e econômica estão entre vocês? Novamente, a resposta seria: quase nenhum.

  • De nobre nascimento: Esta última categoria diz respeito à aristocracia, àqueles que possuíam linhagem, sobrenomes importantes, propriedades e riqueza herdada. Eram os "nobres" da sociedade, com um pedigree que lhes garantia status e respeito. A pergunta implícita de Paulo é: quantos Condes ou Barões, por assim dizer, compõem a igreja de Corinto? A conclusão seria a mesma.

É fundamental entender o tipo de "chamado" ao qual Paulo se refere. Não se trata do chamado geral do Evangelho, que foi pregado abertamente por toda a cidade de Corinto e ouvido por muitos. Trata-se do chamado eficaz e interno do Espírito Santo, aquele que persuade o coração de maneira irresistível e efetivamente traz uma pessoa para a fé. Enquanto muitos ouviram a mensagem exteriormente, Paulo se dirige àqueles que foram chamados "por dentro", no coração, e que por isso se tornaram parte da igreja. Eram precisamente esses que, ao olharem para si mesmos, perceberiam que Deus não baseou sua escolha nos critérios que eles agora usavam para se dividir.


3. A Lógica Invertida de Deus: Os Improváveis como Instrumentos de Vergonha

Após demonstrar quem não estava presente em grande número na igreja, Paulo opera uma inversão completa, revelando a surpreendente lógica por trás da escolha divina. Ele passa a descrever não apenas quem Deus chamou, mas a própria natureza daqueles que Ele elegeu, introduzindo o verbo "escolher" para enfatizar a soberania e a deliberação divina nesse processo. Aqueles a quem Deus escolhe, Ele chama; e Ele só chama eficazmente aqueles a quem Ele escolhe.

“Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são,” (1 Coríntios 1:27-28)

Aqui, Paulo apresenta três categorias que são o exato oposto das elites valorizadas pela sociedade. Cada uma delas tem um propósito específico:

  • As coisas loucas do mundo: Em contraste com os "sábios", Deus escolheu aqueles que, para o mundo, eram tolos — pessoas sem instrução formal, sem refinamento intelectual, consideradas incompetentes e ignorantes. A palavra "loucas" não se refere a uma condição mental, mas à ausência de credenciais acadêmicas e filosóficas que o mundo greco-romano exaltava.

  • As coisas fracas do mundo: Em oposição aos "poderosos", Deus selecionou os que não possuíam poder, influência ou status. Eram os cidadãos comuns, sem poder político, econômico ou social para moldar os destinos da cidade. Eram pessoas que o mundo facilmente manipula e descarta.

  • As coisas humildes e desprezadas: Fazendo um contraponto aos "de nobre nascimento", Deus voltou seu olhar para os plebeus, os pobres, os que não tinham linhagem ou importância social. Paulo intensifica essa descrição com a expressão "aquelas que não são", referindo-se a pessoas tão insignificantes aos olhos do mundo que eram como se não existissem.

O propósito dessa escolha deliberada não é aleatório; é teológico e confrontador. Deus escolhe os "loucos" para envergonhar os sábios e os "fracos" para envergonhar os fortes. Essa "vergonha" se concretizará no dia do juízo, quando aqueles que se consideravam sábios e poderosos descobrirão que sua sabedoria e poder não lhes serviram de nada diante de Deus. Eles perceberão, para sua consternação, que a salvação foi concedida justamente àqueles que eles desprezaram a vida inteira.

É importante ressaltar que essa dinâmica não deve ser confundida com uma "escolha preferencial pelos pobres", como sugerem algumas correntes da teologia da libertação. O ponto central não é a condição social em si, mas o método divino para abater a arrogância humana e anular qualquer pretensão de mérito. É um padrão que se repete por toda a história da redenção: Deus exalta os humildes e derruba os orgulhosos de seus tronos.

Para que não restem dúvidas sobre o tipo de pessoa que compunha a igreja, o próprio Paulo, em outro trecho desta mesma carta, oferece um retrato vívido da membresia de Corinto antes de sua conversão:

“Ou não sabeis que os injustos não hão de herdar o Reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino de Deus. E é o que alguns têm sido; mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus e pelo Espírito do nosso Deus.” (1 Coríntios 6:9-11)

O argumento, portanto, é esmagador. Os coríntios estavam se gloriando em homens com base em critérios (sabedoria, eloquência, poder) que Deus não apenas ignora, mas ativamente contraria em seu plano de salvação. Ele foi buscar seus eleitos entre ladrões, bêbados e imorais para formar sua Igreja. Como o historiador Oldhousen observou, "toda a história da expansão da igreja nos primeiros séculos é uma vitória progressiva dos ignorantes sobre os eruditos, dos humildes sobre os elevados, até que o próprio imperador depositou sua coroa diante da cruz de Cristo."


4. O Propósito Soberano: "A Fim de que Ninguém se Glorie"

A seleção divina dos improváveis, dos marginalizados e dos anônimos não é um ato de sentimentalismo ou preferência social. É uma estratégia teológica com um objetivo final e inegociável, que Paulo revela no clímax de seu argumento:

“a fim de que ninguém se glorie na presença de Deus.” (1 Coríntios 1:29)

Esta pequena frase é a chave para toda a passagem. A razão pela qual Deus escolhe e chama de uma maneira que desafia a lógica humana é para anular qualquer base para o orgulho. Ao selecionar aqueles que não possuem méritos reconhecidos pelo mundo — sem nobreza, sabedoria ou poder —, Deus elimina a possibilidade de qualquer pessoa se apresentar diante d'Ele e reivindicar sua salvação com base em suas próprias qualidades. Ninguém poderá dizer: "Deus me escolheu porque eu era mais culto", "porque eu vinha de uma boa família" ou "porque eu tinha uma moralidade superior". Seria impossível contar vantagem ou se exibir.

Este princípio está enraizado em um atributo fundamental do Criador: Deus não divide a Sua glória com ninguém. Portanto, todo o plano de salvação, do início ao fim, é projetado para ser obra exclusiva d'Ele.

Isso levanta um ponto crucial sobre a natureza da salvação. Uma visão comum sugere que Deus prepara o caminho da salvação — enviando Cristo para morrer e ressuscitar —, mas a ativação final depende exclusivamente da iniciativa humana, como se houvesse uma grande máquina com um botão vermelho, e a salvação só ocorresse quando o indivíduo, por sua própria vontade autônoma, decide pressioná-lo. Embora essa perspectiva valorize a decisão humana, ela entra em conflito direto com o argumento de Paulo. Se a ação decisiva é minha, então parte da glória pela minha salvação também é minha. A oração de gratidão teria que ser dividida: "Agradeço a Deus por ter feito a parte d'Ele, e agradeço a mim mesmo por ter feito a minha".

O texto de Coríntios, no entanto, apresenta uma dinâmica diferente. Sim, Deus preparou o sistema de salvação, mas Ele faz mais: é Ele quem, pelo Seu Espírito, toma a mão do eleito e a move para crer. A pessoa de fato crê, aceita e se submete livre e alegremente, mas a origem dessa disposição para crer vem de Deus. É um chamado interno que persuade e capacita. Somente dessa forma a conclusão de Paulo faz sentido: "aquele que se gloria, glorie-se no Senhor". Se Deus é o iniciador e o consumador da fé, toda a glória pertence somente a Ele.

Para ser historicamente preciso, é importante notar que a igreja de Corinto não era desprovida de pessoas de posses. Em Romanos 16:23, Paulo menciona um homem chamado Erasto, "o tesoureiro da cidade" de Corinto, em cuja casa ele estava hospedado. Erasto era, muito provavelmente, um homem rico, poderoso e de influência. No entanto, ele representa a exceção que confirma a regra. A esmagadora maioria da igreja no primeiro século, não apenas em Corinto, era composta por pessoas comuns: pobres, soldados, diaristas, pequenos comerciantes e viúvas. Foi somente no século IV, quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, que as elites passaram a compor a igreja em massa, trazendo consigo um novo conjunto de desafios.


Augustus Nicodemus. 04. Quem Deus chama para ser Dele (1Co 1.26-31). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6fu8330cuiU. Acesso em: 21/08/2025.

Avatar de diego
há 4 dias
Matéria: Bíblia
Artigo

0 Comentários

Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar!

Você precisa entrar para comentar.
Pergunte à IA