1. A Igreja Não é o "Novo Israel": O Silêncio do Novo Testamento e a Interpretação de Gálatas 6:16

Ao estudarmos a relação entre a Igreja e Israel, deparamo-nos frequentemente com o conceito de "Teologia da Substituição", que sugere que a Igreja assumiu o lugar de Israel nos planos de Deus, apropriando-se de todas as suas promessas. No entanto, uma leitura atenta das Escrituras revela um dado impressionante: em nenhum lugar do Novo Testamento a Igreja é explicitamente chamada de "Novo Israel", "Israel Espiritual" (como substituição) ou "Verdadeiro Israel".

A Bíblia mantém uma distinção clara. O termo "Israel" é utilizado cerca de setenta e três vezes no Novo Testamento e, na esmagadora maioria dos casos, refere-se inequivocamente ao povo judeu étnico ou à nação de Israel.

O texto que gera maior debate sobre este tema encontra-se na carta de Paulo aos Gálatas. Vejamos o que diz o apóstolo:

"E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz e misericórdia sejam sobre eles e sobre o Israel de Deus." (Gálatas 6:16, ARA)

A Distinção no Texto Grego

Muitos teólogos que defendem a substituição argumentam que "o Israel de Deus" é um sinônimo para a Igreja. Contudo, a estrutura gramatical do versículo sugere o contrário. Paulo pronuncia uma bênção sobre dois grupos distintos:

  1. "Eles": Os cristãos gentios que andam conforme a regra da nova criação, não dependendo da circuncisão.
  2. "O Israel de Deus": Uma referência específica aos judeus crentes em Jesus, o remanescente fiel que aceitou o Messias.

A conjunção "e" (do grego kai) aqui funciona como um conector entre dois grupos, e não como uma explicação (como se dissesse "sobre eles, isto é, o Israel de Deus"). Paulo, que passou toda a carta combatendo a imposição de ritos judaicos aos gentios, não terminaria sua epístola confundindo as duas identidades. Pelo contrário, ele reconhece a unidade na fé, mas mantém a distinção das identidades.

Portanto, o silêncio do Novo Testamento em renomear a Igreja como "Israel" é ensurdecedor. A Igreja é o corpo de Cristo, um mistério revelado, composta de judeus e gentios, mas ela não anula a existência nem as promessas feitas à nação de Israel.


2. Textos de Controvérsia: O Reino, a Descendência e o Sacerdócio (Mateus 21, Romanos 9 e 1 Pedro 2)

Para compreendermos corretamente o plano de Deus, precisamos examinar as passagens que, à primeira vista, parecem sugerir que Israel foi permanentemente descartado. Três textos principais são frequentemente utilizados para defender essa ideia, mas uma exegese cuidadosa revela um quadro diferente.

O Julgamento dos Lavradores Maus (Mateus 21:43)

Jesus, ao confrontar os líderes religiosos de Sua época, profere uma sentença dura na Parábola dos Lavradores Maus:

"Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos." (Mateus 21:43, ARA)

Muitos interpretam "um povo" como sendo a Igreja gentílica substituindo Israel. No entanto, o contexto imediato mostra que Jesus estava falando aos principais sacerdotes e fariseus (v. 45), a liderança corrupta daquela geração específica. O Reino foi tirado daquela liderança infiel e entregue aos apóstolos e aos discípulos (o remanescente judeu fiel) que, mais tarde, incluiriam os gentios. Não se trata da rejeição da nação inteira para sempre, mas do julgamento de uma liderança que rejeitou o Messias.

A Verdadeira Descendência de Abraão (Romanos 9:6-8)

Paulo faz uma distinção crucial ao discutir a incredulidade dos judeus:

"E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os que são de Israel são, de fato, Israel." (Romanos 9:6, ARA)

Aqui, o apóstolo não está redefinindo a Igreja como o "Novo Israel". Ele está ensinando o conceito de remanescente. Dentro da nação étnica de Israel, sempre houve dois grupos: os que são apenas descendentes físicos e os que são filhos da promessa (que têm fé). A Igreja não se torna Israel; em vez disso, Paulo explica que a promessa de Deus sempre foi sustentada pelo remanescente fiel dentro de Israel, ao qual os gentios são agora agregados.

A Nação Santa e o Sacerdócio Real (1 Pedro 2:9)

Pedro utiliza títulos do Antigo Testamento originalmente aplicados a Israel para descrever a Igreja:

"Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus..." (1 Pedro 2:9, ARA)

Ao usar essa linguagem de Êxodo 19:6, Pedro não está dizendo que Israel perdeu esses títulos, mas que a Igreja (formada por judeus e gentios) agora participa dessa vocação sacerdotal. A expansão dos privilégios do Reino aos gentios não exige a expulsão de Israel de suas alianças originais. Deus é rico o suficiente para cumprir Suas promessas a Israel e, ao mesmo tempo, estender Sua graça salvadora a todas as nações, formando um corpo sacerdotal universal.


3. Unidade sem Confusão: O "Novo Homem" e a Verdadeira Circuncisão (Efésios 2 e Filipenses 3)

Um dos argumentos centrais para a compreensão da relação entre a Igreja e Israel encontra-se na Carta aos Efésios. Paulo descreve o mistério da união entre judeus e gentios de uma forma revolucionária, não como uma substituição, mas como uma reconciliação.

A Parede de Separação Derrubada

Em Efésios, Paulo explica o que Cristo realizou na cruz em relação à inimizade histórica entre os dois grupos:

"Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade... para que, dos dois, criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz." (Efésios 2:14-15, ARA)

A "parede de separação" refere-se à Lei cerimonial e aos decretos que mantinham judeus e gentios segregados. Ao cumprir a Lei, Cristo removeu a barreira da inimizade. Note, porém, a linguagem usada: Deus criou "dos dois" (judeus e gentios) um novo homem.

A Igreja é esse "Novo Homem". Ela não é um "Israel gentílico", mas uma nova entidade espiritual composta por crentes de ambas as origens. A união não apaga a distinção étnica ou histórica — um judeu continua sendo judeu e um gentio continua sendo gentio — mas, em Cristo, eles compartilham a mesma cidadania espiritual e acesso ao Pai. Não houve uma transferência de identidade, mas uma criação de comunhão.

A Verdadeira Circuncisão Espiritual

Outro texto frequentemente citado para sugerir que a Igreja tomou o lugar de Israel é Filipenses 3:3:

"Porque nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne." (Filipenses 3:3, ARA)

Aqui, Paulo está contrastando a verdadeira piedade com os "falsos mestres" (que ele chama de "mutilação" no verso anterior) que exigiam a circuncisão física para a salvação. O apóstolo afirma que a realidade espiritual da circuncisão — o corte do pecado no coração — pertence a todos os que estão em Cristo.

Isso define quem são os verdadeiros adoradores, mas não anula as alianças irrevogáveis de Deus com a nação física de Israel. Ser a "circuncisão espiritual" significa participar das bênçãos espirituais de Abraão, mas não significa deserdar os descendentes físicos de Abraão das promessas territoriais e nacionais que Deus jurou a eles. A Igreja desfruta das bênçãos espirituais da Nova Aliança, que foi feita com a casa de Israel e de Judá (Jeremias 31:31), mas isso ocorre por enxerto, não por usurpação.


4. A Lição da Oliveira: A Raiz, os Ramos e a Restauração Futura (Romanos 11)

Se houvesse alguma dúvida sobre a substituição de Israel, o apóstolo Paulo dedica um capítulo inteiro para saná-la. Em Romanos 11, ele utiliza a ilustração de uma oliveira cultivada para explicar a complexa relação entre os judeus incrédulos, os gentios crentes e as promessas dos patriarcas.

A Raiz Sustenta os Ramos

Paulo adverte os cristãos gentios a não se sentirem superiores aos judeus que não creram:

"Se, porém, alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo oliveira brava, foste enxertado em meio deles e te tornaste participante da raiz e da seiva da oliveira, não te glories contra os ramos. Mas, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti." (Romanos 11:17-18, ARA)

Nesta analogia:

  • A Oliveira: Representa o lugar das bênçãos da aliança e das promessas de Deus.
  • A Raiz: Representa os Patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó) e as alianças feitas com eles.
  • Ramos Quebrados: Judeus que rejeitaram o Messias (incredulidade).
  • Oliveira Brava (Enxertada): Os gentios que creram em Jesus.

A lição é de humildade profunda. A Igreja não substituiu a árvore; ela foi enxertada na árvore que já existia. Nós, gentios, somos participantes das promessas feitas a Israel, mas não somos os donos originais da árvore. A seiva que nos nutre vem das alianças feitas com os pais da fé judaica.

O Mistério do Endurecimento Parcial

Paulo prossegue revelando um "mistério" — uma verdade divina anteriormente oculta:

"Porque não quero, irmãos, que ignoreis este mistério (para que não sejais presumidos em vós mesmos): que veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios. E, assim, todo o Israel será salvo..." (Romanos 11:25-26, ARA)

Aqui encontramos a chave escatológica (sobre o fim dos tempos):

  1. Endurecimento Parcial: Nem todos os judeus rejeitaram Jesus (Paulo era um exemplo), e esse endurecimento não é total.
  2. Temporário: O endurecimento dura "até que" a plenitude dos gentios entre. Isso implica um limite de tempo.
  3. Restauração Final: Deus promete que, após esse período, haverá um avivamento nacional onde "todo o Israel será salvo".

Isso prova que Deus não terminou com Israel. Se a Igreja tivesse substituído Israel para sempre, Paulo não falaria de um futuro onde a nação judaica seria restaurada e salva. A rejeição atual serviu para a entrada dos gentios, mas a aceitação futura deles será como "vida dentre os mortos" (v. 15).


5. Conclusão: A Fidelidade de Deus e a Esperança de Todo o Israel

Ao percorrermos as Escrituras, do silêncio do Novo Testamento sobre um "Novo Israel" até a profunda revelação da oliveira em Romanos, uma verdade resplandece: Deus não desiste das Suas alianças.

A ideia de que a Igreja substituiu Israel não é apenas um erro de interpretação sobre a identidade nacional dos judeus; é, fundamentalmente, um ataque ao caráter de Deus. Se Deus pudesse cancelar Suas promessas eternas feitas a Abraão, Isaque e Jacó por causa da infidelidade humana, que garantia teria a Igreja de que Ele não faria o mesmo conosco? A nossa segurança reside justamente no fato de que Deus é fiel, mesmo quando somos infiéis.

O apóstolo Paulo resume essa garantia divina com uma declaração poderosa:

"Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis." (Romanos 11:29, ARA)

A Igreja é o plano glorioso de Deus para reunir todas as nações em Cristo, formando um "Novo Homem". Nós, gentios, fomos convidados para a festa, enxertados na oliveira rica e feitos participantes das bênçãos espirituais. No entanto, isso não nos dá o direito de arrogância, mas nos chama à gratidão e à responsabilidade.

O plano de Deus é vasto o suficiente para incluir a Igreja e restaurar Israel. Não precisamos diminuir um para exaltar o outro. Devemos, portanto, olhar para o povo judeu não como uma nação rejeitada para sempre, mas como o povo da promessa, "amados por causa dos patriarcas" (Romanos 11:28), aguardando o dia em que seus olhos serão abertos para o Messias, Jesus.

Que possamos viver com humildade, valorizando nossas raízes espirituais e orando pela paz de Jerusalém, confiando naquele que é poderoso para cumprir tudo o que prometeu.


Dois Dedos de Teologia. NÓS NÃO SUBSTITUÍMOS ISRAEL NA PROMESSA DE DEUS. Yago Martins. Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=ACu_FD0wXO0

Avatar de diego
há 8 horas
Matéria: Bíblia
Artigo

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