Contexto e Urgência: A Multidão Apertava a Palavra
A narrativa bíblica registrada em Lucas, no início de seu capítulo 5, transporta o leitor para as margens do Lago de Genesaré, também conhecido como Mar da Galileia. Este cenário, onde se localizava a cidade de Cafarnaum, era um centro de vida e subsistência baseado na pesca. É neste contexto cotidiano que se desenrola um dos episódios mais cruciais da vocação dos primeiros discípulos.
O texto inicia-se descrevendo uma cena de intensa procura:
"Aconteceu que Jesus estava junto ao Lago de Genesaré, e a multidão apertava para ouvir a palavra de Deus." (Lucas 5:1)
Esta urgência da multidão em buscar a palavra de Deus era um fenômeno constante na vida de Jesus, especialmente após os milagres e curas realizados, conforme narrado no final do capítulo 4. A fama de Cristo corria pela Galileia, levando as pessoas a O seguirem com insistência. A multidão, que pouco antes havia tentado impedir Sua partida de Cafarnaum, agora O cercava na praia, ansiando por ouvir Seus ensinamentos.
Jesus, buscando uma plataforma adequada para falar com eficácia àquelas pessoas, avistou dois barcos junto à praia. Os pescadores, tendo encerrado uma noite de trabalho infrutífero, haviam desembarcado e estavam ocupados com a rotina de limpar e lavar suas redes. Entre eles estavam Simão (Pedro), Tiago e João, seus sócios.
Jesus, então, escolhe o barco de Simão para se afastar um pouco da margem. Historiadores e guias da região notam um fenômeno de áudio natural no Mar da Galileia, onde o vento que sopra do mar em direção à costa facilitava a transmissão e a compreensão das palavras de um orador posicionado em um barco, transformando-o em um púlpito eficaz. Assentado no barco, Jesus começou a ensinar as multidões reunidas na praia.
É importante notar que, embora este momento seja o ponto de virada para o chamado formal de Pedro, o pescador não era um estranho para o Mestre. Pouco antes, Jesus havia entrado na casa de Simão e curado sua sogra de uma febre, demonstrando uma autoridade que ia além da simples pregação. Esse conhecimento prévio, aliado ao testemunho da cura, certamente preparou o coração de Pedro para o que estava por vir.
Após concluir Sua pregação, Jesus Se dirige a Simão, dando uma ordem que, à primeira vista, parecia ilógica para um pescador experiente:
"Quando acabou de falar, Jesus disse a Simão: Leva o barco para um lugar mais fundo do Lago. Então lancem as redes de vocês para pescar." (Lucas 5:4)
Pedro, que acabara de passar a noite inteira em vão, responde com uma mistura de respeito e ceticismo profissional, chamando Jesus não de Rabi (Mestre de um discípulo), mas de Epistates (superintendente ou chefe, no grego), um termo que denota respeito pela autoridade, mas não necessariamente pela identidade divina:
"Em resposta, Simão disse-lhe: Mestre, havendo trabalhado toda a noite, nada apanhamos; mas é sobre essa sua palavra lançarei as redes." (Lucas 5:5)
Apesar da lógica e da experiência indicarem o contrário, a obediência de Simão à palavra de Jesus, mesmo após uma noite de frustração, prepara o palco para o milagre que se seguiria, e, mais importante, para a profunda revelação que mudaria sua vida e a de seus companheiros.
A Pesca Abundante: Um Sinal Que Desvia o Foco
A obediência de Simão Pedro à palavra de Jesus, desconsiderando sua vasta experiência como pescador que havia tentado em vão a noite inteira, resultou em um acontecimento extraordinário. Ao lançarem as redes em águas mais profundas, conforme instruído:
"Fazendo isso, apanharam grande quantidade de peixes, e as redes deles começaram a se romper. Então fizeram sinais aos companheiros de outro barco para que fossem ajudá-los e foram e encheram ambos os barcos a ponto de quase afundarem." (Lucas 5:6-7)
O resultado foi uma pesca milagrosa de proporções assombrosas. A quantidade de peixes era tamanha que as redes começaram a rasgar e o peso fez com que os dois barcos, o de Pedro e o de seus sócios Tiago e João, ficassem repletos, à beira do naufrágio. A admiração e o espanto tomaram conta de todos os envolvidos, confirmando a autoridade de Cristo sobre os elementos naturais e a provisão.
Este sinal prodigioso, a grande pesca, é frequentemente interpretado como o ponto central da passagem. Em muitas abordagens, a narrativa é lida através de uma lente que busca extrair ensinamentos práticos e sequenciais para alcançar o sucesso ou a prosperidade material: emprestar o "barco" (os bens) a Jesus, obedecer à Sua palavra, não duvidar e chamar os "sócios" (amigos) para repartir a abundância.
No entanto, concentrar-se exclusivamente na prosperidade ou na recompensa material da pesca arrisca desviar o olhar do verdadeiro núcleo da mensagem. Embora a pesca tenha sido um milagre inegável, Lucas, ao narrar a história a Teófilo, parece guiar o leitor para um entendimento que transcende o evento em si.
O fenômeno da abundância, especialmente em um contexto cultural onde o peixe era o principal alimento e a pesca a principal atividade, pode ter evocado nos judeus que esperavam o Messias antigas profecias. Uma delas, registrada em Ezequiel 47, fala de um rio que sai do Templo e que traz vida por onde passa, transformando até mesmo o Mar Morto (o mar que não tinha peixes) em um lugar onde surgiriam cardumes aos milhares.
Ao testemunhar aquela multiplicação de peixes, é plausível que tenha surgido na mente de Pedro e seus companheiros a ligação com a vida de Deus manifestada, reconhecendo que estavam diante Daquele que não apenas comanda a natureza, mas que é a própria fonte da vida.
A Pesca Abundante, portanto, não é o fim da história, mas o sinal que leva os homens a reconhecerem quem é o Autor do milagre. O foco do texto não reside na promessa de riqueza ou sucesso, mas na revelação da identidade de Jesus, o que provocaria em Pedro uma reação muito mais profunda do que a simples alegria pela fartura.
De Epistates a Kyrios: A Verdadeira Identidade Revelada
O milagre da pesca abundante não gerou em Simão Pedro uma reação de euforia ou de celebração pela riqueza recém-adquirida. Pelo contrário, o prodígio levou-o a uma profunda crise de reconhecimento e temor. Vendo o ocorrido, Simão Pedro prostrou-se aos pés de Jesus, expressando sua completa indignidade.
"Vendo isso, Simão Pedro prostrou-se aos pés de Jesus, dizendo: Senhor, afasta de mim, porque eu sou um pecador." (Lucas 5:8)
Este momento é o ápice da passagem e revela a identidade de Jesus de maneira inequívoca para o pescador. A transformação na forma como Pedro se dirige a Jesus é notável. Inicialmente, ele O havia chamado de Mestre (Epistates, no grego), um termo que denota respeito a um supervisor ou autoridade, mas que se encaixa no âmbito da relação profissional ou social.
Após o milagre, porém, Pedro utiliza o vocativo Senhor (Kyrios). Embora este termo pudesse ser usado respeitosamente para autoridades ou mestres, no contexto da prostração e da confissão de pecado, ele adquire um significado que transcende o mero respeito social. Para um judeu monoteísta, a prostração era um ato reservado exclusivamente a Deus. Curvar-se diante de outro homem era um ato forçado ou de escravidão. Ao prostrar-se e chamar Jesus de Kyrios, Simão Pedro estava, no íntimo de seu coração, reconhecendo a natureza divina e soberana do homem em seu barco.
O reconhecimento da santidade de Cristo traz consigo a imediata percepção do próprio estado pecaminoso. A confissão de Pedro — "eu sou um pecador" — não é um lamento casual, mas um grito de temor sagrado. Tal reação reflete a mentalidade judaica sobre a impossibilidade de um pecador permanecer vivo na presença direta de Deus, o Santo. Assim como o Sumo Sacerdote só podia entrar no Santo dos Santos (o local da Shekinah ou presença divina) uma vez por ano, o pecador temia ser fulminado diante da santidade manifesta.
Pedro não se interessou em tocar ou abraçar os peixes; sua atenção se fixou no Rei. O sinal visível da abundância o levou à convicção invisível: a de que estava diante do Filho de Deus. Ele não via um curandeiro ou um gestor de milagres, mas o próprio Autor da Vida. Sua súplica ("afasta de mim") não era por desinteresse, mas por um temor reverencial de alguém que reconhece a distância insuperável entre a condição humana pecadora e a glória divina. A grande pesca, portanto, cumpriu seu papel: não enriquecer, mas revelar.
O Perigo de Focar no Milagre: Sinais vs. o Autor da Vida
A reação de Simão Pedro ao se prostrar e confessar seu pecado, ignorando a pesca abundante, aponta para o perigo constante de se fixar nos sinais e não no Autor da Vida. Historicamente, as pessoas têm procurado Jesus por aquilo que Ele pode proporcionar, e não por Sua identidade essencial.
O apóstolo Paulo, mais tarde, sintetizaria esta dicotomia:
"Pois os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios." (1 Coríntios 1:22-23)
A multidão que apertava Jesus em Cafarnaum estava interessada em Seus poderes: na cura, no exorcismo e na multiplicação do bem-estar. Eles O seguiam para "tirar" algo d'Ele. O pedido de Pedro, no entanto, foi oposto: "Senhor, afasta de mim", um desejo de se distanciar da santidade percebida, motivado pelo temor e pelo reconhecimento da sua própria condição de pecador. A fé verdadeira não está centrada no que se pode obter de Cristo, mas no que Ele é.
Quando a fé se concentra unicamente nos milagres, o relacionamento com o divino se torna transacional. Jesus é buscado não como Rei, mas como:
- Gestor de Projetos Milagrosos: Alguém cujo aval é necessário para o sucesso material.
- Curandeiro ou Exorcista: Alguém que resolve problemas imediatos, mas é dispensável após a cura.
- Sócio no Negócio: Alguém que é convidado para o "barco" apenas para garantir a prosperidade financeira da empreitada humana.
Este tipo de abordagem, que reduz Cristo a um meio para se alcançar fins materiais, configura um "golpe do baú espiritual", onde o interesse se volta para as bênçãos e não para o Abençoador.
Um exemplo vívido desta falha é a história dos dez leprosos curados por Jesus. Dos dez que foram purificados, apenas um retornou para agradecer e prostrar-se. Os outros nove obtiveram o sinal (a cura), mas não experimentaram o Reino (a vida transformada pela presença do Rei). Eles pararam no milagre, perdendo a oportunidade de conhecer Aquele que é a própria vida.
A Pesca Abundante, portanto, deve ser compreendida como o maior sinal apontando para o maior milagre: a presença do Filho de Deus em carne. O centro da Bíblia não é a prosperidade, a cura ou a pesca, mas Cristo, pois d'Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas. Ao reconhecer o Kyrios em seu barco, Pedro entendeu que o foco de sua vida não deveria mais ser o que Jesus faria por ele, mas a vida que Jesus é.
Pescadores de Homens: Capturar para a Vida, Não para o Sustento
Diante da confissão de indignidade e do temor de Simão Pedro, Jesus oferece uma resposta de acolhimento e um novo propósito para sua vida.
"Então Jesus disse a Simão: Não tenha medo; de agora em diante você será um pescador de gente." (Lucas 5:10)
Esta frase não é apenas uma mudança de profissão; é uma redefinição radical da vocação. A profundidade desta transformação é sublinhada pela distinção linguística entre os tipos de pesca.
A pesca que Pedro e seus sócios praticavam era para o sustento. O termo grego para a "pesca" da noite fracassada está ligado a agra, que se refere à caça ou à captura de animais para o abate e o consumo. Era a subsistência baseada na retirada da vida.
Em contraste, quando Jesus declara que eles serão "pescadores de homens", Ele utiliza o verbo zogreo. Este termo não se refere à captura para a morte, mas sim a capturar vivo (ou "prender"), com a intenção de preservar a vida e conduzir a pessoa a um novo estado.
A implicação teológica desta diferença é monumental. Eles deixariam de ser provedores de alimentos para se tornarem provedores de vida. O objetivo da nova missão não é alcançar o cardume para saciar a fome do pescador, mas sim alcançar o coração das pessoas para saciar a fome delas pela vida verdadeira.
O reino de Deus, diferentemente dos reinos humanos, não busca súditos para sustentar o rei, mas o Rei sai para alcançar pessoas e repartir Sua vida. A vocação do discípulo, assim, se estabelece em um princípio de generosidade e serviço. A intenção não é utilizar o próximo como um degrau para o sucesso individual, nem escravizá-lo para cumprir metas ou relatórios de um "império" ministerial.
Pescadores de homens são aqueles que capturam pessoas para integrá-las à família de Deus, compartilhando a vida plena e abundante que é encontrada em Cristo. Essa é a essência do evangelho:
Jesus pesca pessoas para repartir a vida, não para tirar a vida. Ele pesca pessoas para trazê-las para a família de Deus, não para usá-las.
O novo chamado transforma o propósito de vida de Simão, Tiago e João. Sua energia e paixão, antes empregadas na caça para a subsistência, seriam agora canalizadas para a tarefa de levar outros à vida e à liberdade.
O Chamado Radical: Deixar Tudo e Seguir o Rei
A passagem culmina com o ato mais decisivo e menos compreendido do episódio: o abandono dos frutos do milagre em favor do seguimento.
"E arrastando eles os barcos para a praia, deixando tudo, o seguiram." (Lucas 5:11)
Este versículo finaliza o relato com uma ironia profunda. A multidão, que continuava maravilhada com a visão dos barcos cheios, enxergava na pesca abundante a resposta para suas necessidades materiais e o potencial para futuros milagres (como a cura de doenças ou a resolução de problemas). Para eles, os peixes e os barcos eram a prova do poder de Jesus e o objeto de sua esperança.
Contudo, Pedro, Tiago e João, tendo se prostrado e reconhecido o Kyrios, realizaram o gesto de desapego radical. Eles arrastaram os barcos cheios — o resultado tangível e inesperado da provisão divina — para a praia e, em seguida, deixaram tudo para trás. O verdadeiro milagre, para eles, não estava na quantidade de peixes que quase afundava o barco, mas na revelação do Rei que estava ali.
O chamado de Cristo exige uma reordenação de prioridades. O seguimento não é um acréscimo de prosperidade à vida antiga, mas a inauguração de uma nova realidade onde Cristo é o centro de todas as coisas. A fé genuína não se resume a procurar o que Cristo pode dar, mas a descobrir quem Ele é e, consequentemente, estar disposto a deixar o que nos interessa em função do interesse supremo: seguir o Rei.
Isso implica que o objeto da fé não é o milagre, mas o Milagreiro. O verdadeiro discípulo reconhece que, mesmo que o barco esteja cheio ou vazio, mesmo que haja abundância ou necessidade, a única coisa essencial é a presença e o caminho de Cristo.
O abandono dos barcos e dos peixes simboliza o desapego de qualquer ídolo ou foco que ofusque a glória do Filho de Deus. Seguir a Cristo significa ter a convicção de que Ele já é tudo o que se precisa, e o resto é apenas um detalhe na caminhada. Este é o caminho dos discípulos que nascem não por causa dos sinais, mas pela fé no Rei que se fez carne e que oferece a vida em abundância, convidando Seus seguidores a fazerem o mesmo: capturar vivo para repartir a vida.
A Casa da Rocha - #07 - Sinagoga está no deserto - Zé Bruno - Meu Caro Amigo. https://www.youtube.com/watch?v=9K2IKTz-A8w&list=PLln4KGoeU_UlYAKpYT6dSHyl8oNMkDcO9&index=7