A Necessidade da Iniciativa Divina: O Conceito de Auto-revelação
Para compreendermos a profundidade da fé cristã e da teologia reformada, é imprescindível começarmos pelo fundamento: a Palavra de Deus. No entanto, para entendermos a Palavra, precisamos antes compreender o conceito de revelação. A premissa básica da teologia bíblica é a de que o ser humano, por si só, não possui a capacidade inerente de conhecer a Deus.
Essa incapacidade não decorre apenas de uma falha intelectual, mas da própria natureza da existência. Nós somos seres finitos, mortais e limitados. Deus, em contrapartida, é infinito, imortal e eterno. Existe um abismo ontológico entre o Criador e a criatura. Como o finito não pode comportar o infinito, se Deus não tomasse a iniciativa de se revelar, o conhecimento divino seria, para nós, uma impossibilidade absoluta.
O teólogo Hermisten Maia resume esta realidade com precisão:
"Sem a revelação, o homem não teria o menor conhecimento de Deus, por mais engenhosos que fossem os métodos, por mais sistemáticas que fossem as pesquisas, por mais que a ciência evoluísse. O homem nunca conseguiria chegar a Deus ou mesmo a sua ideia. Ignoraria eternamente a própria ignorância!"
Deus é, simultaneamente, imanente (próximo da Sua criação) e transcendente (está acima e além dela). Ele é espírito, imutável e eterno. Não há nada na constituição humana que nos permita "acessar" a Deus por mérito ou esforço próprio. Para que o conheçamos, é necessário que Ele rompa a barreira da transcendência e entre na nossa realidade.
Uma analogia útil para ilustrar essa dependência é imaginar um personagem de uma obra literária, como Hamlet de Shakespeare. Como poderia um personagem, fruto da mente do autor, conhecer o próprio Shakespeare? A única maneira seria se o autor decidisse se inserir na história, fazendo-se conhecido dentro da narrativa. Da mesma forma, dependemos que o Autor da Vida entre na nossa história para se revelar.
Herman Bavinck, um dos grandes nomes da teologia reformada, enfatiza a soberania de Deus neste processo:
"Deus é absolutamente independente e perfeitamente soberano. Ele não depende em nenhum aspecto de nós, mas nós somos absolutamente dependentes dele, tanto natural quanto racional e moralmente. Portanto, não temos nenhum controle e poder sobre ele. Não é possível fazermos dele o objeto de estudo e reflexão. Não podemos buscá-lo, exceto se ele se deixar ser encontrado. [...] O conhecimento de Deus é disponível ao homem quando, e somente quando, Deus escolhe se revelar."
O Significado de Revelação
Biblicamente falando, revelação não é apenas a transmissão de dados ou informações sobre uma divindade distante. O termo correto é auto-revelação. É o ato de Deus comunicar a Si mesmo, revelando o Seu caráter, o Seu ser e os Seus propósitos.
Muitas vezes, corre-se o risco de tratar a teologia como um mero acúmulo intelectual de fatos sobre Deus. No entanto, a revelação bíblica é profundamente relacional. Alister McGrath oferece uma definição esclarecedora sobre este ponto:
"O conceito de 'revelação' não significa mera transmissão de um conjunto de conhecimentos, mas sim a manifestação pessoal de Deus na história. Deus tomou a iniciativa por intermédio de um processo de autorrevelação, que atinge seu ápice e plenitude na história de Jesus de Nazaré."
Portanto, estudar a revelação é estudar como Deus decidiu, voluntariamente, fazer-se conhecido aos seres humanos para estabelecer um relacionamento com eles.
Revelação Mediata e Imediata
Ao analisarmos como essa auto-revelação ocorre, os teólogos costumam dividi-la em duas categorias quanto ao modo de transmissão:
- Revelação Mediata: É aquela que ocorre através de um meio. Assim como nós utilizamos meios de comunicação (televisão, internet, rádio) para obter notícias, Deus utiliza "mídias" ou instrumentos para se comunicar conosco. Ele se serve da natureza, da história e de eventos externos para transmitir o Seu conhecimento.
- Revelação Imediata: O termo "imediata" aqui não se refere apenas à rapidez, mas à ausência de meios (sem mediação). É uma comunicação direta de Deus com o interior do ser humano, tocando diretamente a consciência e a mente, sem a necessidade de um intermédio externo.
Esses dois modos de revelação operam conjuntamente para que a humanidade não tenha desculpas quanto à existência e ao poder do Criador, preparando o terreno para o entendimento das categorias mais amplas de revelação: a Geral e a Especial.
Revelação Geral: Deus se Manifestando na Criação e na História
A teologia cristã classifica a forma como Deus se comunica em duas grandes categorias. A primeira delas é a chamada Revelação Geral. Embora a expressão "revelação geral" não conste literalmente nas Escrituras, o conceito é profundamente bíblico e fundamental para entendermos a responsabilidade humana diante do Criador.
Podemos definir a Revelação Geral sob dois aspectos principais: o seu público e o seu conteúdo.
- Geral no Público: Ela é universal. Está disponível a todas as pessoas, em todos os lugares e em todas as épocas. Independente de cultura, nível intelectual ou localização geográfica, todo ser humano é alvo dessa revelação.
- Geral no Conteúdo: Ela oferece informações generalistas. A Revelação Geral nos fornece um panorama de Deus — Sua glória, Seu poder e Sua divindade — mas não nos entrega detalhes específicos sobre Sua pessoa, como Seu nome redentor ou a obra específica de salvação. É como ler a biografia resumida na orelha de um livro: você sabe quem é o autor e suas credenciais básicas, mas não conhece a intimidade da sua vida.
Características da Revelação Geral
Para aprofundar nossa compreensão, destacamos quatro características essenciais desta modalidade de revelação:
- Universal: Ao contrário da revelação bíblica, que foi entregue em contextos históricos específicos para grupos específicos, a revelação na natureza atinge a totalidade da raça humana.
- Natural: Ela se utiliza de meios naturais. Deus comunica Sua glória através das estações, da chuva, do sol e da ordem biológica, diferindo dos atos sobrenaturais (como a encarnação ou a ressurreição).
- Contínua: É ininterrupta. Desde o momento da criação até o fim dos tempos, a natureza continua a "falar". Ela não cessa.
- Criacional: O foco está na revelação da glória de Deus na criação e na preservação do mundo, e não na graça salvadora da cruz.
A Confissão Belga, um documento histórico reformado de 1561, descreve poeticamente essa realidade no seu Artigo 2, afirmando que conhecemos a Deus primeiramente:
"Pela criação, preservação e governo do universo, que é para os nossos olhos como um belíssimo livro, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar 'os atributos invisíveis de Deus', isto é, 'o seu eterno poder e divindade', como diz o apóstolo Paulo em Romanos 1:20."
Essa ideia gerou a famosa metáfora dos "Dois Livros": Deus se revela no Livro da Natureza (Criação) e no Livro da Redenção (Escritura).
Deus Falando através da Criação
As Escrituras afirmam categoricamente que o universo não é mudo. O Salmo 19 é o texto clássico sobre o assunto:
"Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite. Sem discurso nem palavras, não se ouve a sua voz. Mas a sua voz ressoa por toda a terra, e as suas palavras, até os confins do mundo." (Sl. 19:1-4)
O salmista utiliza uma linguagem paradoxal: a natureza não usa palavras humanas, não emite sons articulados, mas a sua mensagem "grita" por toda a terra. É uma proclamação contínua e ininterrupta da majestade do Criador.
Jesus também endossou a validade da revelação natural. Em Lucas 12, Ele instrui seus discípulos a observarem os corvos e os lírios do campo. A lição é teológica: ao observar a provisão alimentar para as aves e a beleza estética das flores, deduzimos que existe um Ser bondoso e provedor sustentando a realidade. A natureza aponta para a bondade e a providência divina.
Teologia Natural: Argumentos Racionais
A observação da Revelação Geral permite o desenvolvimento do que chamamos de Teologia Natural — conclusões lógicas sobre Deus a partir da natureza. Historicamente, teólogos sistematizaram essas observações em argumentos clássicos:
- Argumento Cosmológico: Baseia-se na lei de causa e efeito. Se o universo existe e não é eterno (teve um início), ele deve ter uma Causa. O nada não produz coisa alguma. Logo, deve existir uma "Causa não causada", autoexistente e poderosa o suficiente para gerar o cosmos. Essa causa é Deus.
- Argumento Teleológico: Derivado do grego telos (propósito/fim). Ao olharmos para o universo, não vemos o caos, mas uma ordem complexa e um ajuste fino impressionante — desde as leis da física até a complexidade do olho humano ou do código genético. Tal design e funcionalidade não podem ser fruto do acaso; eles exigem um Designer inteligente e infinitamente sábio que estabeleceu propósitos para a criação.
Stephen Charnock, um puritano do século XVII, elencou diversos atributos de Deus visíveis na natureza, tais como: Poder (na grandeza do universo), Sabedoria (na complexidade da vida), Bondade (na provisão de recursos) e Imutabilidade (na constância das leis naturais e das estações).
Deus na História
A Revelação Geral não se limita à natureza estática; ela se estende à dinâmica da história humana. Deus não é um observador passivo, mas o Senhor que conduz os acontecimentos.
O apóstolo Paulo, em seu discurso no Areópago em Atenas, deixa isso claro:
"De um só fez ele todos os povos, para que povoassem toda a terra, tendo determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em que deveriam habitar." (Atos 17:26)
Isso significa que a ascensão e queda de impérios, as fronteiras das nações e até mesmo a época e o local do nosso nascimento estão sob a soberania divina. A história não é cíclica ou aleatória; ela é linear e guiada por Deus.
Um exemplo bíblico notável é o do rei assírio Senaqueribe. Quando ele ameaçou Jerusalém, gabando-se de suas conquistas militares, Deus respondeu através do profeta Isaías (Is. 37), informando ao rei arrogante que todas as suas vitórias foram, na verdade, determinadas por Deus desde os tempos antigos. Senaqueribe era apenas uma ferramenta na mão do Soberano.
Outro exemplo histórico é Alexandre, o Grande. Sua conquista meteórica do mundo antigo espalhou a cultura e a língua grega (helenismo). Séculos depois, essa unificação linguística permitiu que o Novo Testamento fosse escrito em grego koiné, uma língua compreendida em quase todo o mundo conhecido, facilitando a explosão missionária do cristianismo primitivo.
Assim, tanto na grandiosidade do cosmos quanto nos detalhes da história humana, Deus está "falando" e se revelando genericamente a todos os homens.
A Revelação na Consciência Humana e a Insuficiência da Teologia Natural
Além de se manifestar externamente na criação e na história, a Revelação Geral possui uma dimensão interna, operando de modo imediato (sem intermédio) na interioridade humana. Deus se revela na consciência.
A Lei Gravada no Coração e o Argumento Moral
Paulo argumenta em Romanos 2:14-15 que os gentios, mesmo sem terem acesso à Lei escrita de Moisés, demonstram possuir a obra da lei gravada em seus corações. Suas consciências ora os acusam, ora os defendem. Isso aponta para o Argumento Moral.
Existe em todo ser humano um senso inato de certo e errado. Embora culturas variem em aplicações específicas, princípios fundamentais — como a reprovação do assassinato injustificado, a valorização da verdade ou a noção de justiça — são universais. De onde vem esse padrão moral? A natureza física é amoral; uma árvore não comete pecado, um leão não é "mau" por caçar uma gazela.
Se o universo fosse apenas matéria e acaso, a moralidade seria uma ilusão evolutiva. No entanto, a existência de uma lei moral universal exige um Legislador Moral transcendente. Esse senso de dever, essa "voz" interna que nos julga, é uma impressão digital de Deus na alma humana. Calvino chamou isso de sensus divinitatis (senso da divindade), uma semente da religião que habita em todo homem.
Argumento Ontológico
Relacionado a isso, temos o Argumento Ontológico (do grego ontos, ser). Ele postula que a própria ideia de um Ser perfeito e supremo na mente humana é, em si, uma evidência. Como seres finitos e imperfeitos poderiam conceber a noção de perfeição infinita se tal Ser não existisse para implantar esse conceito? A universalidade do fenômeno religioso — presente em todas as culturas, das mais primitivas às mais complexas — reforça que o homem é um ser incuravelmente religioso, programado para buscar o transcendente.
O Problema da Insuficiência
Se a Revelação Geral é tão clara (na criação) e tão íntima (na consciência), por que ela não é suficiente para salvar? Por que precisamos da Bíblia ou de Jesus?
O problema não está na qualidade da revelação de Deus. O "transmissor" (a criação) funciona perfeitamente; os céus continuam proclamando a glória de Deus. O defeito está no "receptor": o ser humano caído.
A entrada do pecado no mundo causou uma catástrofe no aparelho cognitivo e espiritual da humanidade. Em Romanos 1:18-21, Paulo explica o processo trágico da resposta humana à revelação geral:
- Supressão da Verdade: Os homens "detêm a verdade em injustiça". Eles percebem a revelação, mas ativamente a suprimem, como quem tenta segurar uma bola debaixo d'água.
- Ingratidão e Futilidade: Tendo conhecido a Deus (pela natureza), não O glorificaram nem Lhe renderam graças. Seus pensamentos tornaram-se fúteis.
- Obscurecimento: O "coração insensato deles obscureceu-se". A lente pela qual o homem lê o "Livro da Natureza" está quebrada e suja pelo pecado.
- Idolatria: O ser humano não deixa de ser religioso, mas perverte sua adoração. Em vez de adorar o Criador, ele passa a adorar a criatura (ídolos, animais, homens ou a si mesmo). Ele cria "deuses" à sua própria imagem e semelhança — deuses que ele pode manipular e controlar.
O teólogo Louis Berkhof descreve essa condição com maestria:
"Como resultado da entrada do pecado no mundo, a escrita de Deus na natureza ficou muito obscura... Além disso, o homem foi atingido pela cegueira espiritual e, assim, está privado da capacidade de ler corretamente aquilo que Deus originariamente escreveu com clareza nas obras da criação."
Mesmo que a consciência humana aponte para o certo e o errado, o pecado distorce essa bússola. Culturas inteiras podem chegar a suprimir leis naturais básicas, como o valor da vida, normalizando atrocidades (como o sacrifício de crianças ou o canibalismo em certas tribos) em nome de divindades falsas.
A Necessidade da Redenção
Portanto, a Revelação Geral é suficiente para condenar, mas insuficiente para salvar. Ela deixa o homem "indesculpável" (Rm 1:20), pois mostra que Deus existe e é poderoso, mas ela não revela o nome de Jesus, não prega o arrependimento e não oferece o perdão dos pecados.
A natureza grita "Deus é Poderoso!", "Deus é Sábio!", "Deus é Justo!". Mas a natureza não consegue dizer: "Deus é amor e enviou Seu Filho para morrer por pecadores". O trovão manifesta a majestade de Deus, mas não a Sua misericórdia redentora.
Para que o homem fosse resgatado dessa cegueira e da condenação, Deus precisou falar de novo. Desta vez, não através de nuvens ou estrelas, mas através de palavras claras, profetas e, finalmente, através do Seu próprio Filho. É aqui que a Revelação Especial se torna indispensável.
Revelação Especial: O Plano Redentor e a Manifestação em Cristo
Diante da incapacidade humana de encontrar a Deus apenas pela natureza — devido à cegueira espiritual causada pelo pecado — Deus, em Sua infinita misericórdia, não abandonou a humanidade à própria sorte. Ele inaugurou uma nova categoria de comunicação: a Revelação Especial.
Diferente da Revelação Geral, que mostra Deus como Criador e Sustentador, a Revelação Especial apresenta Deus como Redentor. O seu propósito primário não é apenas informar, mas salvar. O teólogo R.C. Sproul define essa distinção com clareza:
"A revelação especial mostra o plano de Deus para a redenção. Ela nos fala da encarnação, da cruz e da ressurreição — coisas que não podem ser aprendidas por meio de um estudo da natureza."
A natureza pode nos ensinar sobre a gravidade e a biologia, mas jamais nos contará sobre o perdão dos pecados ou a vida eterna.
Características: Progressiva e Redentora
A Revelação Especial possui características vitais para o seu entendimento:
- Redentora: Ela surge como resposta direta à Queda. Imediatamente após o pecado de Adão e Eva, Deus inicia esse processo (Gênesis 3:15), prometendo um Salvador. O objetivo é restaurar o relacionamento quebrado.
- Progressiva: Deus não revelou todo o Seu plano de uma só vez. A revelação aconteceu ao longo da história, "muitas vezes e de muitas maneiras" (Hb 1:1). No Antigo Testamento, Deus utilizou sombras, tipos, símbolos e metáforas. É como uma semente que contém toda a informação da árvore, mas que precisa de tempo para germinar, crescer e florescer. A luz da revelação foi brilhando cada vez mais forte até chegar ao "meio-dia" perfeito em Cristo.
As Formas da Revelação Especial
Ao longo dos séculos, antes de termos o texto bíblico completo, Deus utilizou diversas formas para comunicar essa revelação especial:
- Teofanias: A palavra vem do grego theos (Deus) e phainein (aparecer). São manifestações visíveis e temporárias de Deus. No Antigo Testamento, Deus apareceu a Abraão, a Isaque e a Jacó. Um exemplo clássico é o "Anjo do Senhor", que falava como Deus e aceitava adoração, sendo identificado por muitos teólogos como uma cristofania (uma aparição pré-encarnada de Cristo).
- Nota importante: A aparição de Jesus a Paulo na estrada de Damasco, ou a própria encarnação, não são tecnicamente teofanias, pois a encarnação de Jesus é permanente (Ele é homem para sempre), enquanto a teofania é passageira.
- Milagres e Sinais: Deus interveio na história rompendo a ordem natural para autenticar Sua mensagem e Seus mensageiros. A sarça ardente, a abertura do Mar Vermelho ou o sinal do velo de Gideão são exemplos de Deus comunicando Seu poder e Sua vontade de forma sobrenatural.
- Profecias: Esta foi uma das formas mais comuns. Deus levantava homens e colocava Suas palavras na boca deles. Quando um profeta dizia "Assim diz o Senhor", não era uma opinião humana, mas uma comunicação direta da mente de Deus para o Seu povo.
Jesus Cristo: O Verbo Encarnado
Todas essas formas anteriores — teofanias, rituais, profecias — eram preparatórias. Elas apontavam para o clímax, o ápice absoluto da Revelação Especial: Jesus Cristo.
O autor de Hebreus estabelece esse contraste glorioso:
"Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo." (Hb. 1:1-2)
Jesus não é apenas um profeta que traz a revelação; Ele é a própria Revelação. Ele é o Verbo (a Palavra) de Deus encarnado.
O apóstolo João afirma que "ninguém jamais viu a Deus", mas que o "Deus Unigênito" (Jesus) o revelou (Jo 1:18). A palavra grega usada ali nos dá a ideia de "exegese". Jesus é a exegese perfeita do Pai. Quem vê a Jesus, vê o Pai. Nele, a revelação especial atinge sua completude, pois não se trata mais de Deus falando através de um meio ou de um mensageiro humano, mas do próprio Deus se fazendo homem para habitar entre nós.
A Revelação Especial, portanto, encontra seu centro e seu fim na pessoa e na obra de Cristo.
A Transmissão das Escrituras e a Doutrina da Inspiração Orgânica
Se a Revelação Especial culminou em Jesus Cristo e nos atos redentores de Deus na história, como nós, séculos depois, temos acesso a essa verdade? A resposta reside no registro dessa revelação. Deus, em Sua sabedoria, providenciou para que a Sua auto-revelação fosse preservada e transmitida através das Escrituras Sagradas.
Da Oralidade à Escrita
O processo de formação da Bíblia não foi instantâneo. Inicialmente, houve uma fase de oralidade. No contexto do antigo Oriente Próximo, a cultura oral era extremamente forte e precisa. As histórias da criação, dos patriarcas e os ensinamentos de Jesus foram, a princípio, transmitidos verbalmente.
O Antigo Testamento nos mostra Deus ordenando que o povo repetisse constantemente a Lei aos seus filhos (Deuteronômio 6). No Novo Testamento, Lucas inicia seu Evangelho destacando esse processo de transição:
"Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado..." (Lucas 1:1-3)
Lucas, como um historiador meticuloso, pesquisou os relatos orais e as testemunhas oculares para compilar um registro escrito e ordenado. A transição para a escrita foi fundamental para garantir a preservação e a integridade da mensagem contra as falhas da memória humana e as distorções do tempo.
O Conceito de Inspiração
A teologia cristã afirma que a Bíblia não é apenas um livro de memórias humanas sobre Deus, mas a própria Palavra de Deus. Isso nos leva à doutrina da Inspiração.
O texto chave é 2 Timóteo 3:16: "Toda a Escritura é inspirada por Deus". A palavra grega utilizada é theopneustos, que significa literalmente "soprada por Deus". Isso indica que a Escritura tem sua origem e fonte no próprio Deus. Ela é o produto do fôlego divino.
Mas como esse "sopro" funcionou na prática? Ao longo da história, surgiram teorias equivocadas que precisamos evitar para compreender a verdadeira natureza da Bíblia:
- Inspiração Mecânica (Ditado): A ideia de que os autores bíblicos entraram em transe e Deus usou suas mãos apenas como máquinas de escrever (similar à psicografia). Isso anularia a personalidade do autor.
- Inspiração Intuitiva: A ideia de que os autores eram apenas gênios religiosos, como Shakespeare ou Platão, com uma percepção espiritual aguçada, mas puramente humana.
- Inspiração Temática: A ideia de que Deus deu apenas os "temas gerais" ou conceitos (como "amor" ou "salvação") e deixou os autores escreverem o que quisessem sobre isso, sujeitos a erros nos detalhes.
A Doutrina Correta: Inspiração Orgânica, Verbal e Plena
A visão ortodoxa e bíblica da inspiração pode ser resumida em três termos:
- Orgânica: Deus utilizou os autores humanos em sua totalidade. Ele usou a cultura, o vocabulário, o estilo, as emoções e o contexto histórico de cada escritor (como Paulo, Davi ou Lucas). Deus não suprimiu a personalidade deles; pelo contrário, Ele soberanamente preparou esses homens para que, escrevendo de forma natural e humana, registrassem exatamente a Palavra de Deus. A Bíblia é, portanto, 100% divina e 100% humana.
- Verbal: A inspiração se estende às próprias palavras, não apenas às ideias. Deus guiou a escolha dos termos para garantir a precisão da revelação. Se a inspiração não fosse verbal, a interpretação do texto seria subjetiva e incerta.
- Plena (ou Plenária): Significa que toda a Escritura é inspirada, sem exceção. Não é que a Bíblia "contém" a Palavra de Deus (o que implicaria que partes dela poderiam não ser de Deus), mas que ela é a Palavra de Deus. Isso inclui desde os salmos mais belos até as genealogias mais longas de Crônicas. Mesmo trechos aparentemente áridos possuem um propósito redentor e histórico dentro do plano divino.
O teólogo Michael Horton sintetiza essa cooperação divino-humana:
"A iniciativa de Deus na revelação está presente não apenas nos poderosos atos de julgamento e libertação, mas na interpretação de Deus desses acontecimentos. [...] Deus revela-se na História apenas na medida em que ele considera necessária para a nossa invocação dele para a nossa salvação e vida."
Conclusão
Ao estudarmos a Revelação Geral e Especial, percebemos um Deus que não se escondeu, mas que grita Sua glória nos céus e sussurra Sua moral em nossa consciência. No entanto, por causa do nosso pecado, essas vozes foram suprimidas. Por isso, louvamos a Deus pela Revelação Especial, que culminou em Cristo e foi inerrantemente registrada na Bíblia.
É nas Escrituras, inspiradas plena e organicamente pelo Espírito Santo, que encontramos a chave para interpretar a natureza, a história e, principalmente, para encontrar a salvação em Jesus Cristo. Como disse o próprio Jesus: "Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam" (João 5:39).
Sexta Igreja. REVELAÇÃO GERAL E ESPECIAL | AULA 06 | CURSO DE TEOLOGIA REFORMADA | PR DIEGO RUY. Disponível em: https://youtu.be/ZkF_B83owGw?si=VQ2HKIui5u58bH2u.