1. A Sequência Lógica de Lucas: Do Leproso ao Publicano
O estudo do Evangelho de Lucas, especificamente no capítulo 5, revela uma construção narrativa cuidadosa e intencional. Ao escrever para Teófilo, Lucas não apenas relata fatos isolados, mas organiza eventos em uma sequência lógica para explicar a natureza do Rei e do Seu Reino. A narrativa apresenta uma tríade de encontros que desafiam as convenções sociais e religiosas da época, culminando no chamado de Levi, o publicano.
Para compreender a profundidade desse terceiro evento — o chamado de um cobrador de impostos — é essencial observar o que o antecedeu. Lucas agrupa três situações distintas de exclusão: o leproso, o paralítico e o publicano.
"Aconteceu que, estando ele numa das cidades, veio um homem cheio de lepra; e vendo a Jesus, prostrou-se com o rosto em terra e rogou-lhe, dizendo: Senhor, se quiseres, bem podes limpar-me." (Lc. 5:12)
Primeiramente, temos o leproso. Na sociedade judaica da antiguidade, a lepra não era apenas uma enfermidade física, mas uma sentença de impureza ritual e isolamento social. A lei exigia que o leproso vivesse afastado, fora do arraial, sendo considerado intocável. Ao tocar e curar este homem, Jesus quebra a barreira da impureza ritual, demonstrando que o Reino acolhe aquele que a sociedade considera imundo e contagioso.
Em seguida, o texto apresenta o paralítico. Este caso traz à tona a teologia da retribuição, comum na época, onde se acreditava que defeitos físicos eram punições divinas por pecados específicos, sejam do indivíduo ou de seus pais. A discussão sobre a culpa é silenciada quando Jesus, além de curar a paralisia, declara o perdão dos pecados, assumindo autoridade sobre a condição espiritual e física do homem.
Finalmente, a sequência chega ao publicano. Diferente do leproso (cuja condição era involuntária) e do paralítico (cuja condição gerava debates sobre culpa hereditária), o publicano representava uma exclusão baseada em escolhas morais e políticas deliberadas. Ele era visto como um traidor da nação, alguém que escolheu colaborar com o Império Romano em troca de lucro, oprimindo seus próprios compatriotas.
Essa progressão narrativa estabelece uma base fundamental para entender a proposta do Evangelho: o Reino de Deus não opera segundo a lógica de exclusão religiosa. Ele alcança o ritualmente impuro, o fisicamente incapaz e, de forma ainda mais escandalosa, o traidor moralmente condenável.
"Depois disto, saiu e viu um publicano, chamado Levi, assentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me. E ele, deixando tudo, levantou-se e o seguiu." (Lc. 5:27-28)
Assim, ao chegarmos ao episódio de Levi, não estamos apenas vendo mais um discípulo sendo chamado, mas testemunhando a demonstração suprema de que a graça do Reino alcança aqueles que a religião e o patriotismo já haviam descartado como irredimíveis.
2. O Perfil do Publicano: Traição, Riqueza e Rejeição Social
Para compreender o peso do convite de Jesus a Levi, é necessário entender a figura do publicano na sociedade judaica do primeiro século. Levi não era apenas um pecador comum; ele era um funcionário da máquina de opressão romana, sentado na coletoria — o escritório de arrecadação de impostos e taxas alfandegárias.
Os publicanos eram, em sua maioria, judeus contratados para recolher tributos para o Império Romano. Isso os colocava em uma posição de dupla rejeição:
- Traição Política: Eram vistos como colaboracionistas que serviam ao dominador estrangeiro, traindo a soberania de Israel.
- Corrupção Financeira: O sistema de cobrança permitia abusos. Roma estipulava um valor fixo a ser arrecadado de uma região (segundo o censo), e o que o publicano conseguisse extorquir além desse valor tornava-se seu lucro pessoal.
"O publicano era alguém que, aos olhos do povo, roubava do judeu para entregar aos romanos, lucrando com a desgraça alheia."
Essa dinâmica tornava a coletoria um local detestável. Era o lugar onde o cidadão judeu era forçado a financiar sua própria submissão, muitas vezes diante de um compatriota que enriquecia às custas dessa humilhação. Por isso, os publicanos eram classificados como impuros e indignos. A lei religiosa e os costumes sociais os excluíam da convivência comunitária e da participação nos rituais do Templo. Não havia espaço para eles na fé judaica, pois sua própria profissão era uma afronta contínua à nação e a Deus.
Existe, portanto, uma distinção crucial entre os personagens apresentados por Lucas até aqui:
- O Leproso: Sofria de uma condição impura, mas involuntária.
- O Paralítico: Sofria de uma condição física atribuída, por muitos, a um pecado oculto ou hereditário.
- O Publicano: Sofria as consequências de uma escolha consciente.
Levi escolheu a coletoria. Ele optou pelo lucro e pela associação com o poder vigente (Roma) em detrimento de seu povo e de sua fé. O publicano representa aquele que encontrou uma oportunidade de enriquecer curvando-se ao sistema mundano, mesmo que isso custasse sua integridade e seu lugar na comunidade de fé.
Essa "aliança com Roma" simboliza uma tentação perene: a capacidade humana de adaptar sua espiritualidade ou moralidade quando o sistema dominante oferece poder, honra e prosperidade. No entanto, para a sociedade religiosa da época, essa escolha tornava Levi irremediável, um "maldito" por decisão própria, alguém a quem não se devia estender misericórdia.
3. "Segue-me": A Renúncia Imediata e o Banquete dos Excluídos
O encontro entre Jesus e Levi é marcado por uma brevidade impactante. Não há registro de um longo sermão teológico ou de uma negociação prévia. Jesus passa pela coletoria, o local símbolo da opressão e da avareza, e profere um comando simples: "Segue-me".
A resposta de Levi é radical. O texto bíblico relata que ele "deixou tudo, levantou-se e o seguiu". Esta ação implica um abandono total e imediato de sua carreira, de sua fonte de renda e de sua posição de poder.
"E ele, deixando tudo, levantou-se e o seguiu." (Lc. 5:28)
Imagine a cena: um funcionário público, no meio do expediente, abandona seu posto, deixando para trás livros de contabilidade e moedas, sem aviso prévio. Levi não pediu tempo para organizar sua saída; ele simplesmente rompeu com sua identidade anterior. O chamado do Reino não foi um convite para adicionar Jesus à sua vida de publicano, mas para substituir sua existência inteira por uma nova direção. Isso sugere que, apesar da riqueza material, havia em Levi uma insatisfação profunda, uma prontidão para deixar aquela vida de traição e isolamento social.
O Grande Banquete
A conversão de Levi não resultou em isolamento ascético, mas em celebração comunitária. Logo após deixar a coletoria, ele oferece um "grande banquete" em sua casa.
"Fez-lhe Levi, em sua casa, um grande banquete; e havia ali uma multidão de publicanos e outros que estavam com eles à mesa." (Lc. 5:29)
Este jantar é significativo por dois motivos principais:
- O Público Alvo: Levi convida sua rede de relacionamentos — "uma multidão de publicanos". No texto original, a referência a "outros" que estavam à mesa sugere pessoas que, assim como os publicanos, eram consideradas marginais ou impuras pela elite religiosa. Levi reúne a "escória" da sociedade para apresentar-lhes Aquele que o chamou.
- A Posição do Mestre: Na cultura da época, compartilhar uma refeição era um ato de comunhão íntima. Ao sentar-se à mesa com essa classe de pessoas, Jesus estava publicamente validando-os como seres humanos dignos de Sua atenção, algo impensável para um rabi ou mestre da Lei.
O banquete de Levi é a primeira evidência de que o Evangelho é uma boa notícia que precisa ser compartilhada, especialmente com aqueles que se sentem indignos. Levi não esconde sua mudança; ele abre as portas de sua casa para que seus antigos companheiros de corrupção possam ver e ouvir o Messias que não rejeita o "impuro", mas o convida à transformação.
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A Casa da Rocha. #11 - Reino para todos 3: Os Publicanos - Zé Bruno - Meu Caro Amigo. https://www.youtube.com/live/3FOUx7sJjLo?si=G9YFwus3FQyCVmcz