A Necessidade do Estudo Diligente das Escrituras
Ao nos depararmos com textos bíblicos de alta complexidade, como o início do capítulo 3 da Carta aos Romanos, é comum surgir a indagação sobre o porquê de existirem passagens tão difíceis nas Escrituras. A argumentação teológica densa, muitas vezes construída através de diálogos com interlocutores imaginários e raciocínios lógicos profundos, desafia o leitor moderno.
No entanto, a existência dessas dificuldades não é acidental, mas providencial. Há propósitos pedagógicos e espirituais claros por trás da complexidade bíblica. Um dos principais motivos é o incentivo ao estudo. Para compreender a revelação divina, o povo é obrigado a se dedicar ao aprendizado. Historicamente, isso criou uma cadeia de desenvolvimento intelectual: para estudar a Bíblia, é necessário saber ler; para saber ler, é preciso frequentar uma escola; para haver escolas, alguém deve fundá-las.
Não é coincidência que o movimento que impulsionou a educação pública na Europa tenha sido a Reforma Protestante. O desejo dos reformadores era traduzir a Bíblia para a língua vernácula, permitindo que o povo tivesse acesso direto à Palavra de Deus. Contudo, dado o alto índice de analfabetismo da época, tornou-se imperativo criar escolas. A primeira escola pública da Europa, por exemplo, foi estabelecida em Genebra, sob a influência de João Calvino, com o objetivo primário de capacitar as pessoas a lerem as Escrituras.
"A razão pela qual tem passagens difíceis na Bíblia é exatamente porque é como se Deus dissesse: 'Eu vou me revelar a vocês, mas de um jeito que vou tirar o melhor que vocês podem dar'."
Além do incentivo à alfabetização, a profundidade das Escrituras exige o preparo de líderes e mestres capacitados. A Bíblia é um livro antigo, cuja composição se estende por milênios, escrita em culturas que não existem mais (o Antigo Oriente) e em línguas mortas ou transformadas (hebraico antigo, aramaico e grego koiné).
A distância temporal e cultural nos impede de consultar os autores originais para esclarecer dúvidas. Não podemos perguntar diretamente ao Apóstolo Paulo o significado de um versículo obscuro. Para transpor essa barreira, é necessário o estudo da linguística, da história, da arqueologia e da teologia. Deus, em Sua sabedoria, preservou Sua revelação de uma forma que nos obriga a valorizar a história e a examinar o mundo que Ele criou para compreendermos plenamente a Sua voz.
Portanto, as passagens difíceis não devem ser vistas como obstáculos intransponíveis, mas como convites ao crescimento. Elas nos instigam, desafiam e extraem o nosso melhor esforço intelectual e espiritual. Este princípio reforça o lema da Reforma, Sola Scriptura (Somente a Escritura), reafirmando que a Bíblia é a revelação infalível, inerrante e autoritativa de Deus, digna de todo o nosso empenho para ser compreendida.
A Vantagem do Judeu e a Entrega dos Oráculos de Deus
Ao estabelecer no capítulo anterior que a verdadeira circuncisão é a do coração e que Deus julga o interior do homem, o Apóstolo Paulo antecipa uma objeção natural por parte de seus interlocutores judeus. Se um gentio que guarda a lei é considerado circunciso, e um judeu que a transgride é considerado incircunciso, surge inevitavelmente a questão: qual é, afinal, a vantagem de pertencer ao povo escolhido? Haveria alguma utilidade real na circuncisão e na identidade judaica?
"Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus." (Rm. 3:1-2)
A resposta de Paulo é enfática: a vantagem é imensa. Embora ele desenvolva uma lista mais completa de privilégios posteriormente em sua carta (como a adoção, a glória, as alianças e a descendência de Cristo, conforme Romanos 9), aqui ele destaca o privilégio primordial: a posse dos oráculos de Deus.
O termo "oráculos" refere-se às Escrituras do Antigo Testamento. Na cultura da época, a palavra era utilizada para descrever a comunicação da vontade divina. Ao aplicar este termo às Escrituras, Paulo ensina que a Bíblia é o meio pelo qual Deus faz conhecida a Sua vontade de maneira direta e verbal.
Para compreender a magnitude dessa vantagem, é necessário distinguir os modos pelos quais Deus se revela à humanidade:
- Revelação na Consciência: Deus colocou no interior de cada ser humano um senso de moralidade e a noção da existência de uma divindade (Rm. 1:19; Rm. 2:15). Ninguém nasce ateu; há um conhecimento intuitivo de Deus.
- Revelação na Natureza: A criação proclama a glória de Deus. Ao observar o universo, o homem pode deduzir o eterno poder e a divindade do Criador, o que torna a humanidade indesculpável (Rm. 1:20; Sl. 19:1).
- Revelação Escrita (Os Oráculos): Esta é a revelação superior e específica, confiada primariamente à nação de Israel.
Enquanto as nações pagãs tateavam no escuro, dependendo apenas da consciência e da observação da natureza, Israel possuía a Palavra escrita. Eles conheciam o nome de Deus, sabiam que Ele é o Criador de todas as coisas, entendiam Seus atributos de justiça e misericórdia e, crucialmente, detinham as promessas a respeito do Messias.
As outras nações desconheciam a aliança com Abraão ou o plano de redenção, mas os judeus tinham em mãos a "bússola" da revelação divina. Portanto, a vantagem de Israel no Antigo Testamento era incomparável: eles foram os guardiões da verdade revelada de Deus em um mundo imerso na idolatria e na ignorância espiritual.
A Incredulidade Humana Anula a Fidelidade de Deus?
Diante da afirmação de que os judeus foram privilegiados com a revelação divina, surge uma segunda objeção lógica, possivelmente levantada por um opositor imaginário no discurso de Paulo. O raciocínio é o seguinte: se Deus confiou Seus oráculos a Israel, e esses oráculos apontavam para o Messias, o fato de a nação de Israel, em sua maioria, ter rejeitado Jesus não seria uma prova de que o plano de Deus falhou? A incredulidade do povo não anularia a fidelidade de Deus às Suas promessas?
"E daí? Se alguns não creram, a incredulidade deles virá desfazer a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro, e todo homem, mentiroso..." (Rm. 3:3-4)
A resposta apostólica é categórica: a infidelidade humana jamais compromete o caráter de Deus. O fato de os judeus terem rejeitado os oráculos e o Messias não significa que Deus abandonou Seu povo ou quebrou Sua aliança. Pelo contrário, essa rejeição apenas confirma a verdade bíblica de que todo homem é, por natureza, mentiroso e pecador, enquanto Deus permanece imutavelmente verdadeiro.
Para fundamentar esse argumento, Paulo recorre a uma passagem crucial do Antigo Testamento: o Salmo 51.
"...segundo está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras e venhas a vencer quando fores julgado." (Rm. 3:4; cf. Sl. 51:4)
O contexto histórico do Salmo 51 é fundamental para compreender a aplicação teológica feita aqui. Este salmo foi escrito pelo Rei Davi após seu grave pecado de adultério com Bate-Seba e o subsequente assassinato de Urias. Quando confrontado pelo profeta Natã, Davi não ofereceu desculpas. Ele se humilhou, confessou sua transgressão e reconheceu a justiça de Deus em condená-lo.
Ao dizer "pequei contra ti... para que sejas tido por justo no teu falar", Davi estava declarando que o julgamento divino sobre ele era correto. O pecado de Davi não impugnava a santidade de Deus; ao contrário, a punição e a disciplina de Deus sobre Davi evidenciavam a justiça divina.
Da mesma forma, a incredulidade dos judeus não é um sinal da falha de Deus. A rejeição deles serve para demonstrar que a Palavra de Deus é verdadeira quando afirma que não há um justo sequer. A condenação sobre a incredulidade vindica o caráter santo de Deus. Portanto, a equação bíblica permanece inalterada: a natureza humana pode falhar e mentir, mas a fidelidade e a veracidade de Deus permanecem intactas, mesmo quando Ele executa o Seu juízo.
A Justiça de Deus ao Julgar o Pecado
A discussão avança para um nível de argumentação ainda mais audacioso e revelador da tendência humana de autojustificação. Paulo antecipa uma terceira objeção, derivada diretamente da conclusão anterior. Se a incredulidade e o pecado humano servem para realçar a fidelidade e a justiça de Deus, surge uma pergunta perturbadora:
"Mas, se a nossa injustiça traz a lume a justiça de Deus, que diremos? Porventura, será Deus injusto por aplicar a sua ira? (Falo como homem)." (Rm. 3:5)
O raciocínio do opositor imaginário é distorcido, mas astuto: "Se o meu erro destaca a perfeição de Deus, e se o meu pecado acaba servindo para demonstrar a Sua glória, por que Deus me castigaria? Não seria injusto da parte d'Ele condenar alguém que, indiretamente, colaborou para que Sua justiça fosse manifestada?"
Paulo, quase constrangido por ter de abordar um argumento tão vil (por isso a ressalva "falo como homem"), rejeita essa hipótese com veemência: "Certo que não!". Para desmontar essa lógica falaciosa, ele apresenta dois contra-argumentos principais:
1. A Certeza do Juízo Final Se o argumento do opositor fosse válido — de que Deus não pode punir o pecado que realça Sua glória —, então Deus estaria impedido de julgar qualquer pessoa.
"Do contrário, como julgará Deus o mundo?" (Rm. 3:6)
Todo judeu piedoso acreditava que haveria um Dia do Juízo, onde Deus julgaria o mundo com justiça. Paulo utiliza aqui um argumento lógico: se Deus fosse injusto ao punir esse tipo de pecado, Ele perderia a qualificação moral para ser o Juiz de toda a terra. A própria existência do Juízo Final, aceita pelos judeus, anula a ideia de que o pecado pode ser isento de punição sob qualquer pretexto.
2. A Incoerência dos Acusadores Paulo vira o argumento contra seus próprios perseguidores. Os judeus acusavam Paulo de ser um falso mestre e de pregar mentiras. Usando a lógica distorcida deles, Paulo questiona:
"E, se por causa da minha mentira, fica em relevo a verdade de Deus para sua glória, por que sou eu ainda condenado como pecador?" (Rm. 3:7)
O apóstolo expõe a contradição: "Se vocês dizem que eu minto, e se acreditam que a mentira realça a verdade de Deus, por que então vocês me perseguem e me condenam?" Se o princípio deles fosse verdadeiro, eles deveriam absolver Paulo. O fato de o condenarem prova que, no fundo, eles sabem que o pecado é condenável por si mesmo, independentemente de qualquer resultado "positivo" que a soberania de Deus possa extrair dele.
Assim, fica estabelecido que Deus é perfeitamente justo ao aplicar Sua ira. O fato de Ele ser poderoso o suficiente para fazer com que a maldade humana resulte em glória para Si não isenta o homem da responsabilidade e da culpa por seus atos maus.
A Falácia de Praticar o Mal para que Venham Bens
A última etapa da argumentação de Paulo neste trecho aborda uma distorção perigosa e caluniosa do Evangelho da graça. Levando o raciocínio dos opositores ao extremo do absurdo, o apóstolo expõe a conclusão lógica — e herética — daqueles que tentavam invalidar sua pregação. Se a premissa de que "o pecado humano engrandece a graça divina" fosse levada a sério de forma carnal, o resultado seria uma licença para pecar.
"E por que não dizemos (como alguns caluniosamente afirmam que o fazemos): Praticamos males para que venham bens? A condenação destes é justa." (Rm. 3:8)
Os críticos judeus interpretavam mal a doutrina da justificação pela fé. Ao ouvir Paulo pregar que a salvação não depende das obras da Lei, mas unicamente da graça de Deus, e que "onde abundou o pecado, superabundou a graça", eles concluíam erroneamente que o Evangelho incentivava a libertinagem. O pensamento era: "Se quanto mais eu peco, mais Deus mostra Sua graça perdoadora, então vamos pecar deliberadamente para maximizar a glória de Deus".
Esta acusação de antinomismo (ser contra a lei) não foi exclusiva da época de Paulo. Historicamente, a Reforma Protestante enfrentou o mesmo ataque. Quando Martinho Lutero redescobriu a doutrina da justificação somente pela fé (Sola Fide), a Contrarreforma Católica, no Concílio de Trento, acusou os reformadores de liberarem o povo para viver no pecado, alegando que, se as obras não salvam, não haveria motivo para buscar a santidade.
Infelizmente, essa crítica muitas vezes encontra eco na realidade quando aqueles que se dizem cristãos vivem de maneira indistinta do mundo, abusando da graça como pretexto para a imoralidade. No entanto, Paulo rejeita essa distorção com severidade. Neste ponto da carta, ele não oferece uma longa explicação teológica — isso ele fará no capítulo 6, onde ensinará sobre a união com Cristo e a morte para o pecado —, mas se limita a dar um veredito judicial: "A condenação destes é justa".
Paulo estabelece que não há resposta digna para quem distorce a bondade de Deus para justificar a própria maldade. Aqueles que usam a lógica de "fazer o mal para que venham bens" demonstram não ter compreendido o Evangelho e estão sob o justo juízo de Deus. A graça verdadeira transforma o pecador; ela nunca serve de estímulo para a permanência no erro.
Conclusão: A Soberania Divina e a Nossa Responsabilidade
A análise de passagens teológicas densas, como os primeiros versículos de Romanos 3, oferece lições que transcendem o mero exercício intelectual. A dificuldade dos argumentos de Paulo e as respostas aos seus opositores revelam uma verdade fundamental sobre a natureza humana: há uma tendência inata no coração do homem de se revoltar contra Deus e questionar o Seu julgamento.
Não existe neutralidade espiritual. O ser humano, em seu estado natural, é hostil a Deus e inclinado a fabricar argumentos e silogismos para justificar seus próprios pecados. É somente pela graça divina que essa hostilidade é vencida. Isso nos conduz a uma reflexão paradoxal sobre a bondade de Deus. Frequentemente, ouve-se que "Deus é bom" como uma mensagem de conforto, mas, para o pecador impenitente, essa é uma notícia aterrorizante.
"Sabe qual é a pior notícia que posso dar a vocês? Deus é bom. E por que isso é uma má notícia? Porque nós somos maus e vivemos em um universo controlado por um Deus bom e justo."
Se Deus é bom, Ele necessariamente deve punir o mal. Para um ser humano que ama a iniquidade e deseja autonomia para viver segundo seus próprios desejos, a bondade e a justiça de Deus são ameaças diretas. Portanto, a incredulidade e a rebeldia não apontam para uma falha no caráter de Deus, mas confirmam a corrupção da raça humana.
Diante disso, surge a questão da responsabilidade. Muitos tentam usar a soberania de Deus como desculpa, perguntando: "Como Deus pode me condenar se o mal entrou no mundo sob o Seu decreto permissivo?". A Bíblia, contudo, mantém duas verdades em tensão sem contradição: Deus é soberano absoluto sobre todas as coisas, e o ser humano é plenamente responsável por suas escolhas morais. A mesma Escritura que afirma o controle divino declara que os judeus foram responsáveis por sua incredulidade e que cada indivíduo responderá por sua rebelião no Dia do Juízo.
Consequentemente, a única postura adequada diante da revelação bíblica é a de rendição e humildade. É necessário abandonar as desculpas intelectuais e a superficialidade — muitas vezes alimentada pelo uso excessivo de entretenimento e redes sociais em detrimento do estudo profundo da Palavra — e reconhecer a nossa condição.
O caminho para a reconciliação não é tentar vencer Deus em um debate lógico, mas confessar: "Senhor, Tu és verdadeiro e justo; eu sou falho e pecador". A saída para o dilema humano não está na autojustificação, mas na humilhação diante de Deus e na aceitação, pela fé, da obra redentora de Jesus Cristo. É na cruz que a justiça de Deus (que pune o pecado) e a Sua misericórdia (que perdoa o pecador) se encontram perfeitamente, oferecendo esperança real para todo aquele que crê.
Augustus Nicodemus. 14. Meu pecado e a Glória de Deus (Rm 3.1-8). https://youtu.be/ShMW5hFcWiI?list=PLQ__KBt7xtI-XkAaKZmLolb4VlGsMDex1