O Exercício do Necrológio: Visualizando a Forma Final da Vida
O ponto de partida para um exame filosófico profundo da própria existência reside em um exercício prático, muitas vezes mal compreendido, mas de eficácia fundamental: a redação do próprio necrológio. Este exercício não deve ser encarado como uma atividade mórbida ou depressiva, mas sim como uma ferramenta de clarificação mental e espiritual. O objetivo central é projetar a imagem do que se deseja ter sido após a morte, permitindo, assim, uma compreensão mais nítida de quem se deve ser no presente.
Para que o exercício funcione, é imperativo seguir regras estritas de perspectiva. Não se trata de um diário ou de uma projeção autobiográfica escrita na primeira pessoa. O texto deve ser redigido como se fosse por uma terceira pessoa — um observador externo que conhecesse profundamente o falecido e estivesse escrevendo a seu respeito logo após sua morte.
"Tel qu’en Lui-même enfin l’éternité le change." (Tal como em si mesmo, enfim, a eternidade o transforma.)
— Stéphane Mallarmé
A citação de Mallarmé ilustra o cerne deste exercício. Enquanto estamos vivos, somos um fluxo contínuo de mudanças, potencialidades e acidentes. A morte, simbolicamente, fecha esse ciclo e confere à vida uma forma definitiva. A eternidade transforma o indivíduo naquilo que ele era essencialmente. Ao tentar antecipar essa "forma fechada", o indivíduo consegue distinguir, em sua própria trajetória, o que é acidental e passageiro daquilo que é estável e definitivo.
A Perspectiva do Observador e a Armadilha da Fama
Uma confusão comum ao realizar este exercício é imaginar que se trata de escrever um obituário para um grande jornal, o que pressupõe que o indivíduo se tornou uma figura pública ou famosa. Esta abordagem introduz um viés de vaidade que corrompe o propósito filosófico da atividade.
A fama é um acidente sociológico, não uma substância do caráter. É perfeitamente possível realizar as mais altas ambições humanas e espirituais no mais completo anonimato. Um monge trapista, por exemplo, pode atingir elevados graus de realização interior e santidade sem jamais ter seu nome estampado em manchetes. Portanto, ao redigir o necrológio, deve-se imaginar que ele está sendo escrito por alguém que compreendeu a verdadeira estatura moral e as realizações do indivíduo, independentemente de sua notoriedade pública.
O foco deve recair sobre o legado real, o exemplo deixado e a forma final que a vida adquiriu. É o confronto entre o que se sonha ser e como isso será visto de fora, sem as desculpas e as justificativas internas que utilizamos cotidianamente para mascarar nossas falhas.
A Função da "Baliza" Existencial
A utilidade deste exercício transcende o momento da escrita; ele serve como uma baliza para toda a vida consciente. A vida humana é uma equação complexa entre o que queremos ser, os instrumentos de que dispomos e os obstáculos que o mundo impõe.
Frequentemente, as circunstâncias em que vivemos, as pessoas que conhecemos e as oportunidades que surgem não coincidem com os meios ideais para a realização de nossas ambições mais altas. Há um descompasso constante. Sem uma imagem clara do objetivo final — a tal "forma fechada" visualizada no necrológio —, o indivíduo corre o risco de se perder na multiplicidade das situações.
"Uma grande vida é um sonho de juventude realizado na idade madura."
— Alfred de Vigny
Sem cristalizar esse sonho de juventude em um projeto operacional claro, ele tende a se dissolver. A vida se torna uma sucessão de reações a estímulos externos, onde o indivíduo é moldado pelas pressões do momento, em vez de moldar a si mesmo segundo sua vontade. O necrológio atua, portanto, como o fator unificante. Ele é a referência fixa que permite negociar com as circunstâncias adversas sem perder de vista a essência do que se pretende realizar.
Em suma, este exercício é um ato de sinceridade consigo mesmo. Feito corretamente, ele revela a discrepância entre a vida que estamos levando e a vida que desejamos legar, forçando-nos a assumir a responsabilidade de construir, no caos do cotidiano, a ordem da nossa verdadeira personalidade.
O Fator Unificante versus a Dispersão das Circunstâncias
A vida humana configura-se, invariavelmente, como uma tensão constante entre a unidade e a multiplicidade. De um lado, existe o "fator unificante": a imagem daquilo que o indivíduo deseja ser, o seu objetivo central, a forma final vislumbrada no exercício do necrológio. Do outro lado, encontra-se a "multiplicidade das situações": os eventos aleatórios, os encontros fortuitos, as crises, as oportunidades e os obstáculos que o mundo apresenta diariamente.
A tragédia comum é que as circunstâncias em que vivemos raramente coincidem com os meios ideais para a realização de nossas ambições mais elevadas. Pelo contrário, o ambiente externo frequentemente atua como um fator dispersante, tendendo a dissolver o projeto de vida do indivíduo em uma série de reações automáticas e fragmentadas.
O Sonho de Juventude e o Projeto Operacional
É comum que todos possuam "sonhos de juventude". No entanto, o simples ato de sonhar não garante a realização. Se esse sonho não for traduzido, através de um esforço consciente, em um projeto operacional, ele não resistirá ao atrito com a realidade. Sem a clareza desse projeto — que atua como o eixo central da personalidade —, o indivíduo torna-se incapaz de realizar as negociações exigidas pelas diferentes situações da vida. O sonho acaba por se apagar, diluído na multiplicidade dos eventos cotidianos.
A batalha existencial resume-se, portanto, a este confronto: a capacidade do fator unificante (a vontade consciente e o objetivo definido) de prevalecer sobre o fator dispersante (o caos das circunstâncias).
O Exemplo de Viktor Frankl: Vitória através da Derrota
O exemplo máximo dessa dinâmica pode ser encontrado na vida e na obra do psiquiatra austríaco Viktor Frankl. Dedicado a uma carreira médica e acadêmica, Frankl viu-se atirado na situação mais antagônica possível à sua vocação: um campo de concentração nazista.
Aparentemente, não haveria ambiente mais hostil para a realização de uma vida intelectual e científica. Contudo, foi justamente essa circunstância extrema que forneceu a substância para a sua obra fundamental. A pergunta que orientou seus estudos posteriores nasceu ali: "Por que algumas pessoas, diante do sofrimento extremo, desabam moral e psicologicamente, enquanto outras saem fortalecidas?"
Frankl transformou o obstáculo absoluto — a prisão e o sofrimento — na matéria-prima de sua realização. Ele percebeu que, naqueles que resistiam, o fator unificante (o sentido da vida) prevalecia sobre a dispersão e a destruição do ambiente. Este é um exemplo extremo de vitória obtida "através" da derrota, onde os elementos antagônicos são integrados ao projeto de vida, em vez de destruí-lo.
"A reabsorção da circunstância é o destino concreto do ser humano."
— José Ortega y Gasset
A Reabsorção da Circunstância
A frase de Ortega y Gasset, "Eu sou eu e minha circunstância", é frequentemente citada, mas sua profundidade reside no conceito de reabsorção. O destino do homem não é apenas lutar contra o mundo ou ignorá-lo, mas reabsorver a circunstância.
Isso significa aceitar que uma parte substancial da nossa vida não é escolhida por nós. Recebemos de fora uma série de elementos: o local de nascimento, a época histórica, a herança genética e o círculo social. O círculo de amigos, inclusive, é apontado frequentemente como um elemento altamente corruptor e difícil de manejar, muitas vezes mais perigoso para a integridade do projeto de vida do que um inimigo declarado.
A reabsorção implica pegar esses materiais heterogêneos e, muitas vezes, hostis, e integrá-los na construção da personalidade. É o trabalho de um arquiteto que deve construir um edifício coeso utilizando materiais que não escolheu e que, à primeira vista, parecem inadequados.
O indivíduo maduro não espera por circunstâncias favoráveis; ele entende que o mundo não foi moldado para servi-lo. Ele utiliza a tensão entre o que deseja ser e o que o mundo lhe oferece para forjar sua própria unidade. A "circunstância" deixa de ser apenas um cenário passivo e torna-se o ingrediente ativo que, uma vez digerido e integrado, compõe a realidade do "eu".
A Herança Ancestral e a Integração da Personalidade
A "circunstância" que o indivíduo deve absorver não se resume apenas ao ambiente externo, à sociedade ou à época histórica. Existe uma dimensão interna e, muitas vezes, desconhecida, que compõe a materialidade do nosso ser: a herança hereditária. Nós não escolhemos nossos genes, tampouco escolhemos os traços de temperamento e as inclinações que recebemos de nossos antepassados.
Para a grande maioria das pessoas, a genealogia é um mistério. Mesmo que se conheça uma árvore genealógica que remonte à Idade Média, o conhecimento resume-se geralmente a nomes e datas. Ignora-se a biografia real, os dramas, os vícios e as virtudes dessas pessoas. No entanto, esses elementos estão presentes na constituição biológica e psíquica do indivíduo atual.
Um exemplo ilustrativo é o de alguém que descobre vir de uma linhagem de ferreiros ou consertadores de bicicletas. Embora não haja uma "memória" consciente dessas vidas, as tendências, habilidades ou limitações desses antepassados podem residir latentes na pessoa. São elementos estranhos que habitam o "eu", partes de uma herança que não foram escolhidas pela vontade consciente, mas que exercem pressão sobre ela.
O Peso dos Antepassados (Szondi)
O psiquiatra Leopold Szondi formulou uma ideia inquietante sobre essa dinâmica. Segundo ele, as figuras dos nossos antepassados não são apenas memórias passivas; elas atuam como forças vivas dentro de nós.
"Os nossos antepassados pesam diante de nós, exigindo que nós repitamos os seus destinos."
— Leopold Szondi (Conceito de Análise do Destino)
Esta frase sugere que existe uma galeria de personagens internos sugerindo comportamentos, caminhos e repetições. Muitas vezes, esses impulsos são contraditórios entre si e antagônicos ao projeto de vida consciente que o indivíduo traçou para si mesmo. Quanto mais trágico ou difícil foi o destino de um antepassado, mais forte pode ser a pulsão inconsciente para repeti-lo, como se houvesse uma exigência de reviver aquela história.
O indivíduo, portanto, não é uma tábula rasa. Ele é um campo de batalha onde vozes ancestrais sugerem desejos, ambições, sonhos e impulsos que ele percebe como seus, mas que, na verdade, são a manifestação dessa multiplicidade herdada.
A Personalidade como Conquista
A tarefa filosófica e existencial, neste cenário, é a de gestão e integração. Se o indivíduo não assumir o controle, ele será fragmentado por essas forças internas contraditórias. A personalidade verdadeira não é um dado de nascença, mas uma conquista.
"A maior das delícias que o ser humano experimenta é a personalidade."
— Johann Wolfgang von Goethe
Goethe refere-se aqui à personalidade não como um traço de caráter pitoresco, mas como a capacidade de manter-se uno e fiel ao seu próprio projeto no meio de elementos heterogêneos.
A construção da vida pode ser comparada à obra de um arquiteto que precisa edificar uma casa utilizando materiais que não escolheu. A diferença crucial é que, na arquitetura da vida, esses "tijolos" e "vigas" (os traços hereditários e as circunstâncias) não são inertes; eles têm vontade própria, "falam" e tentam impor sua direção.
A "reabsorção da circunstância" proposta por Ortega y Gasset aplica-se aqui com força total. O destino concreto do ser humano é pegar essa herança — que pode parecer um obstáculo ou um conjunto de elementos antagônicos — e negociar com ela. Não se trata de negar a herança, o que seria impossível, mas de adaptá-la, manejá-la e integrá-la dialeticamente na unidade do trajeto percorrido.
O exercício do necrológio, mencionado anteriormente, serve precisamente para fixar o ponto de chegada desejado, permitindo que o indivíduo arbitre sobre essas vozes internas e decida quais delas servirão ao seu propósito final e quais devem ser domadas ou descartadas. A personalidade é o resultado vitorioso dessa integração entre o que herdamos e o que escolhemos ser.
A Filosofia como Prática Existencial e a Busca pela Verdade
A filosofia, em sua essência, não é apenas uma disciplina acadêmica ou um conjunto de conhecimentos teóricos acumulados ao longo dos séculos. Diferente de áreas como a biologia, onde é possível assimilar as conclusões sem refazer todo o percurso investigativo dos cientistas, a filosofia exige uma apropriação pessoal e uma prática contínua. Ela não se resume a aprender a história das ideias, mas a reencenar, na própria consciência, o drama da busca pela verdade.
Embora a institucionalização acadêmica da filosofia tenha tido momentos de utilidade histórica — como na fundação das universidades medievais, no idealismo alemão ou na Viena do início do século XX —, ela corre o risco constante de se tornar estéril se desvinculada da vida real. A filosofia verdadeira nasce da necessidade de compreender a própria existência e o mundo ao redor, e não da mera erudição.
A Filosofia como Recuperação da Experiência
A base da atividade filosófica é a experiência direta da realidade. No entanto, vivemos imersos em um mundo de símbolos, discursos prontos, opiniões da mídia e convenções sociais que se interpõem entre nós e a realidade. A maior parte do que chamamos de "nosso pensamento" é, na verdade, uma repetição de frases feitas e conceitos que absorvemos passivamente do ambiente cultural.
O filósofo deve realizar um esforço constante para distinguir o que ele realmente sabe — por ter visto, vivido e testemunhado — daquilo que ele apenas ouviu dizer.
"Nós não conseguimos raciocinar a partir dos dados dos sentidos. É preciso que esses dados se incorporem na memória e se cristalizem em certas imagens repetíveis."
— Aristóteles (Conceito adaptado sobre a formação do conhecimento)
Aristóteles aponta que o conhecimento começa na percepção, mas precisa ser processado pela memória e pela imaginação para se tornar inteligível. A filosofia é o trabalho de rastrear a origem das nossas certezas. É perguntar-se: "Eu sei isso porque vi, porque experimentei, ou porque todo mundo diz que é assim?".
O "Altar" da Verdade e a Sinceridade Absoluta
Nesse sentido, a filosofia exige um compromisso radical com a verdade, que pode ser comparado a uma confissão religiosa. Não se pode mentir para si mesmo. A sinceridade é o instrumento fundamental do filósofo.
Em um diálogo filosófico, ou no exame da própria consciência, a pergunta fundamental não é "qual argumento vence", mas "o que é verdade?". A verdade da experiência individual é o solo firme onde o filósofo pisa. Se ele abre mão disso para adotar uma teoria elegante ou socialmente aceita, mas que contradiz sua vivência real, ele abandona a filosofia e entra no terreno da ideologia ou da farsa intelectual.
O Papel da Testemunha Fidedigna
A função do filósofo assemelha-se à de uma testemunha em um tribunal. Uma testemunha não está lá para criar teorias ou para agradar o juiz; ela está lá para relatar o que viu, ouviu e sabe, doa a quem doer.
Muitas vezes, a realidade percebida pelo indivíduo está em desacordo com o consenso geral. O filósofo é aquele que tem a coragem de dizer: "Todos dizem que é X, mas eu vi Y". Manter-se fiel a essa percepção solitária é difícil. A pressão social, o desejo de pertencimento e o medo do ridículo forçam o indivíduo a negar o que seus próprios olhos viram.
A prática filosófica, portanto, é um exercício de resistência contra a falsificação da realidade promovida pelo automatismo social. É o esforço de manter a consciência individual acesa e limpa, capaz de registrar a verdade dos fatos, mesmo quando todo o entorno cultural conspira para o esquecimento ou a distorção. A filosofia, nesse nível, deixa de ser uma profissão e torna-se um modo de vida pautado pela honestidade intelectual intransigente.
A Importância da Alta Cultura e da Linguagem na Expressão da Realidade
Para que a experiência individual da realidade possa ser fixada, compreendida e comunicada, é necessário um instrumento fundamental: a linguagem. No entanto, a linguagem cotidiana, aquela que usamos para as transações correntes e para a convivência social, é frequentemente pobre e esquemática. Ela é feita de clichês, frases feitas e generalizações que, embora úteis para a vida prática, são incapazes de captar as nuances e a profundidade da experiência real.
É aqui que entra o papel insubstituível da alta cultura, e especificamente da grande literatura. A literatura não é apenas entretenimento ou adorno; ela é um vasto repertório de experiências humanas condensadas e expressas com a máxima precisão possível.
O Alargamento do Imaginário
O ser humano só consegue pensar sobre aquilo que consegue imaginar. Se o seu imaginário é pobre, seu pensamento será pobre, por mais sofisticada que seja a sua lógica. A lógica opera sobre os dados que a imaginação lhe fornece. Se a imaginação não fornece as formas, as figuras e as possibilidades da existência, a razão gira em falso.
Ler os grandes clássicos — como Dostoiévski, Shakespeare, Dante, Balzac ou Machado de Assis — não é um ato de pedantismo, mas uma necessidade vital para quem quer compreender a si mesmo e aos outros. Esses autores criaram personagens e situações que mapeiam a alma humana em uma escala que a experiência cotidiana de uma única vida jamais alcançaria.
Ao ler Os Irmãos Karamazov, por exemplo, o leitor não está apenas acompanhando uma trama russa do século XIX; ele está adquirindo categorias de percepção para entender conflitos morais, espirituais e psicológicos que podem estar ocorrendo dentro dele mesmo ou ao seu redor, mas para os quais ele não tinha nome.
A Linguagem como Ferramenta de Precisão
A alta cultura fornece a linguagem necessária para descrever a realidade. Sem as palavras certas, a experiência se perde. Ela permanece como uma sensação vaga, um mal-estar ou uma intuição que nunca se cristaliza em conhecimento.
"Aquele que não sabe expressar o que sente, acaba não sabendo o que sente."
O filósofo, ou qualquer pessoa que busque a verdade, precisa enriquecer seu vocabulário e seu repertório de imagens para conseguir "agarrar" a realidade. A linguagem pobre condena o indivíduo a viver num mundo esquemático, onde tudo é reduzido a rótulos simplistas ("bom" ou "ruim", "gosto" ou "não gosto", "direita" ou "esquerda"), ignorando a complexidade infinita da vida real.
A Literatura Brasileira e a Realidade Nacional
No contexto brasileiro, a leitura dos clássicos nacionais é ainda mais urgente. O Brasil possui uma literatura de altíssima qualidade que é, muitas vezes, negligenciada ou lida de forma escolar e esterilizada. Escritores como Graciliano Ramos, Lima Barreto ou Machado de Assis não estavam apenas escrevendo "belas letras"; eles estavam registrando a substância da vida brasileira, com seus dramas, suas hipocrisias e suas grandezas.
Ignorar esse legado é condenar-se a não entender o país e a não entender a si mesmo como brasileiro. A alta cultura é o espelho onde a sociedade pode se ver sem as distorções da propaganda ou da ideologia momentânea.
Portanto, o estudo da filosofia exige, como pré-requisito ou acompanhamento simultâneo, uma imersão na alta cultura literária. É ela que afina o instrumento da linguagem, permitindo que a filosofia cumpra sua função de expressar a verdade da experiência com a máxima fidelidade possível. Sem esse suporte, o discurso filosófico tende a se tornar um jogo de abstrações vazias, desconectado da vida que pulsa e exige compreensão.
O Dever da Testemunha: Sinceridade e Consciência Individual
O ponto culminante da vida intelectual e filosófica reside na assunção plena do papel de testemunha. Este conceito não deve ser entendido apenas no sentido jurídico, mas em um sentido existencial profundo. A testemunha é aquele indivíduo que viu, ouviu e sabe, e que assume a responsabilidade de manter esse conhecimento vivo, independentemente das pressões externas para negá-lo ou esquecê-lo.
Vivemos em sociedades onde a "verdade" é frequentemente fabricada por consensos midiáticos, acadêmicos ou políticos. Cria-se uma "espiral do silêncio" onde aqueles que percebem a realidade de forma diferente sentem-se intimidados a calar, com medo do isolamento ou do ridículo. O dever do filósofo — e de qualquer pessoa que preze a sua integridade — é romper esse silêncio.
A Solidão da Verdade
Muitas vezes, a verdade é solitária. Pode acontecer de você ser a única pessoa em um determinado ambiente que percebeu um fato óbvio, enquanto todos ao redor, por conveniência ou cegueira induzida, agem como se ele não existisse.
"A verdade é o que é, e não o que os outros dizem que é."
Manter-se fiel à própria percepção, quando todo o mundo diz o contrário, exige uma força de caráter considerável. É muito mais confortável diluir-se na massa e repetir os slogans da moda. No entanto, ceder a essa tentação é cometer suicídio espiritual. É abdicar da própria consciência para se tornar um reflexo do coletivo.
O filósofo deve cultivar uma espécie de "ascetismo da verdade". Ele deve estar disposto a sacrificar a aprovação social, o sucesso fácil e até mesmo amizades, se o preço para mantê-los for a mentira ou a dissimulação.
A Sinceridade como Método
A sinceridade não é apenas uma virtude moral; na filosofia, ela é um método de conhecimento. Se você mente para si mesmo sobre o que sente, o que deseja ou o que viu, você quebra o instrumento de percepção. A lente fica suja, e você não consegue mais distinguir o real do imaginário.
O exercício do necrológio, com o qual iniciamos esta reflexão, é um teste supremo de sinceridade. Ao projetar sua vida a partir do fim, você é forçado a perguntar: "Eu vivi uma mentira ou tentei ser verdadeiro?".
O Legado da Consciência Individual
O que resta de uma vida humana não são apenas as obras materiais ou a fama, mas a qualidade da consciência que ela atingiu. A humanidade avança (ou pelo menos se mantém humana) graças àqueles indivíduos que se recusaram a apagar a luz da sua inteligência para agradar à escuridão ao redor.
A filosofia é a guarda dessa luz. Ela é a tradição daqueles que, desde Sócrates, preferiram a morte ou o ostracismo a negar a verdade que suas almas enxergavam. Ao assumir esse compromisso, o estudante de filosofia não está apenas aprendendo uma matéria; ele está se inscrevendo numa linhagem espiritual de resistência contra a falsidade e o esquecimento.
Em última análise, ser filósofo é aceitar ser a testemunha incômoda da realidade, aquele que lembra à sociedade o que ela desesperadamente tenta esquecer, e que lembra a si mesmo, todos os dias, quem ele deve ser para não trair o dom da existência.