1. A Essência da Perseverança: Mais que uma Ação, um Modo de Ser
O relato de Lucas em Atos dos Apóstolos, ao descrever a vida dos primeiros cristãos, utiliza um termo fundamental: perseverança. O texto afirma que eles "perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações" (Atos 2:42). No entanto, o sentido original dessa palavra vai além de uma simples insistência ocasional.
A forma como o texto está escrito no original grego sugere uma ação contínua e um estado de ser. Não se tratava de um evento esporádico ou de um esforço temporário, como um "fim de semana" de dedicação. A descrição indica que aquelas pessoas, após o Pentecostes, eram perseverantes.
A análise do texto sugere uma conjugação verbal que denota uma insistência constante, 24 horas por dia. Eles não estavam apenas "praticando a perseverança" para alcançar um objetivo; eles se tornaram pessoas perseverantes. Era o seu novo modo natural de vida, um reflexo de uma transformação interna profunda.
Essa perseverança não era um fardo, algo como "eu não aguento mais, mas tenho que perseverar". Era, na verdade, a prática natural de vida daqueles que haviam sido tomados pelo Espírito de Deus. Eles morreram para o antigo modo de vida e nasceram de novo, e essa nova vida se manifestava em uma permanência constante nesses pilares fundamentais.
2. A Doutrina dos Apóstolos: O Foco Inabalável em Cristo
O primeiro pilar da perseverança da igreja primitiva era a "doutrina dos apóstolos". O conteúdo dessa doutrina era singular e exclusivo: Jesus Cristo. Os apóstolos, naqueles dias, pregavam e ensinavam unicamente sobre Jesus – suas palavras, seus ensinos, seus sinais, a maneira como interpretava a Lei e, fundamentalmente, sua ressurreição.
Os Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) são a prova desse foco, pois os autores registraram a vida e os ensinamentos de Jesus. Perseverar nessa doutrina significava manter-se centrado em Cristo, e não em outras figuras ou conceitos.
Havia uma recusa consciente em desviar o foco. O evangelho não se baseava em imitar outras figuras bíblicas, como Davi ou Josué, nem em adotar técnicas de autoajuda, coaching ou neurolinguística. A mensagem era clara: os cristãos são chamados a serem imitadores de Cristo.
"Perseverar na doutrina dos Apóstolos é perseverar em anunciar Jesus Cristo e o seu evangelho que transforma a nossa vida."
Embora outras figuras, como os próprios apóstolos (Paulo, Pedro) ou líderes históricos (como Agostinho ou Bento), sejam reconhecidas por suas contribuições, elas não são o centro da fé. A doutrina apostólica coloca Jesus como o alfa e o ômega, o princípio, o meio e o fim.
A vida cristã, portanto, não é sobre alcançar um objetivo ou um "topo", mas sim sobre uma jornada constante com Cristo, perseverando em conhecê-lo e segui-lo.
3. Comunhão (Koinonia): A Profunda Participação na Vida do Outro
A igreja primitiva perseverava também na "comunhão". A palavra grega utilizada para descrever essa prática é koinonia, um termo que, no contexto do Novo Testamento, vai muito além do simples "estar junto" ou de afinidades superficiais, como torcer pelo mesmo time.
Koinonia é frequentemente traduzida como participação ou comparticipação. Ela descreve uma realidade onde a vida de um indivíduo cabe dentro da vida do outro, e vice-versa.
"Eu não consigo dormir sabendo que você tem alguma coisa que te falta. Eu não consigo ficar em paz porque dentro de mim, no meu coração, habita a sua necessidade. É uma participação de uma vida dentro da outra."
Essa comunhão não era o resultado de uma ordem externa ou de uma instrução litúrgica para "cumprimentar o irmão ao lado". Pelo contrário, era o impulso natural e espontâneo gerado pelo Espírito de Deus habitando naquelas pessoas.
A questão central levantada por essa prática não é se alguém deve ou não interagir com o outro, mas como alguém, cheio do Espírito de Deus – o Deus da comunhão –, consegue viver sem essa conexão profunda. O Espírito que habitava neles impulsionava um interesse genuíno e ativo pela vida do próximo, transformando a interação em um pertencimento real e prático.
4. O Partir do Pão e as Orações: Símbolos de Unidade e Dependência
A perseverança da comunidade se manifestava em duas práticas centrais: o "partir do pão" e as "orações".
O Partir do Pão possuía um significado duplo. Primeiramente, referia-se à Ceia, a refeição em memória de Cristo, celebrando a entrega do seu corpo e sangue. Era um ato de comunhão vertical (com Deus) e horizontal (como corpo de Cristo) ao redor da mesa do Evangelho.
Importante notar que, naquele momento histórico, a "igreja" como instituição formal, com prédios, hierarquias e departamentos, ainda não existia. Eles se reuniam no templo para certas atividades, mas o "partir do pão" também ocorria "de casa em casa" (Atos 2:46).
Em segundo lugar, essa prática estava ligada a um impulso genuíno de pertencimento e partilha. Em um contexto onde o povo estava sobrecarregado por obrigações legais (sacrifícios no templo, impostos, os 613 mandamentos interpretados pelos fariseus) e pela dominação do Império Romano, era esperado que o individualismo prevalecesse. No entanto, o Espírito impulsionou essas pessoas a repartirem voluntariamente o pão de suas próprias casas, vivendo uma vida de pertencimento mútuo, sem que ninguém os obrigasse.
As Orações eram o outro pilar. A perseverança nas orações demonstrava uma dependência coletiva de Deus. Era uma prática que refletia a preocupação genuína uns pelos outros. Quando um pedido de oração era apresentado, como por alguém em estado terminal, a comunidade se engajava com um senso de responsabilidade espiritual, apresentando-se a Deus em favor daquela pessoa.
5. O Temor em Cada Alma: Reverência e Seriedade Diante do Sagrado
Além dos quatro pilares da perseverança, o texto de Atos 2:43 acrescenta um elemento crucial que brotava na comunidade: "Em cada alma havia temor".
A palavra original grega phobos (temor) é descrita no texto como algo que "nascia" ou "brotava" dentro deles como fruto da obra do Espírito. Este não era o medo de punição, de exclusão, de regras humanas ou de perder uma posição de status. Não era o medo de um sistema ou de uma liderança.
Esse temor é comparável ao que Moisés experimentou em Êxodo 3, diante da sarça ardente que não se consumia. Aquele fenômeno era um sinal da presença de Deus, e a instrução divina foi imediata: "Tira as sandálias dos teus pés, porque essa terra aqui é santa".
O temor que havia na igreja primitiva era essa reverência, esse respeito profundo e essa seriedade diante do agir de Deus. Era o reconhecimento de que o que estava acontecendo entre eles não era uma "brincadeira de religião" ou obra humana, mas uma ação direta do Espírito Santo.
"Respeite esse lugar, respeite o que eu estou fazendo. Esse temor tem a ver com respeito, tem a ver com medo [no sentido de reverência], tem a ver com referência, seriedade com o que Deus está fazendo."
Esse temor os protegia de tentar manipular ou comercializar os sinais de Deus. Eles não viam os milagres como uma oportunidade de criar um espetáculo ou vender ingressos, mas como uma manifestação que apontava para Cristo e exigia uma resposta de santidade e respeito.
6. Sinais e Temor: A Resposta ao Agir Sobrenatural de Deus
O texto bíblico não para no temor interno; ele o conecta a uma manifestação externa: "e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos Apóstolos" (Atos 2:43). Havia uma relação direta entre o agir de Deus (os sinais) e a resposta humana (o temor).
Os apóstolos, que haviam testemunhado Jesus acalmar tempestades, ressuscitar mortos e andar sobre as águas, já carregavam uma profunda reverência por ele. Agora, eles mesmos eram os canais para esses sinais.
O propósito desses milagres não era criar "devotos dos sinais", mas solidificar o temor e a referência a Cristo. A reação da comunidade diante de um prodígio não era buscar um sistema para reproduzi-lo, mas reconhecer a seriedade da mensagem que estava sendo pregada.
"Isso me levou para onde? Para Cristo. Isso é sério. Aqui tem temor. Esses sinais estão mostrando que isso aqui não é coisa de homem. Só que não é brincadeira de religião. [...] Isso aqui é uma coisa que o espírito tá fazendo. Respeito, temor, referência."
A fé não se baseia no milagre em si, mas em Cristo, que realiza o milagre. O sinal, quando acontece, deve unir a pessoa ainda mais a Cristo. Esse temor que brotava na alma das pessoas era um antídoto contra a tentativa de controlar, sistematizar ou comercializar o mover de Deus. Ele estabelecia que aquilo não era propriedade de ninguém, mas uma ação soberana do Espírito que exigia santidade e respeito.
7. O Espírito vs. Estrutura: Lições da Igreja Primitiva para Hoje
O relato de Atos 2 não é apresentado como um modelo de sistema ou um manual de métodos a ser copiado. A tendência humana é buscar "sistemas e métodos" para replicar, mas o texto de Atos oferece algo mais profundo: um vislumbre do "espírito" (o sentimento e o movimento de Deus) que deve permear a comunidade.
Naquele momento inicial, a comunidade não tinha um "nome de igreja", prédios dedicados ou uma estrutura organizacional com departamentos e hierarquias. Suas ações – como compartilhar a vida, repartir o pão e orar – não eram o resultado de uma regra ou de um "chefe", mas sim um impulso coletivo produzido pelo Espírito Santo que habitava neles.
"Nós não podemos imitar um modelo de prática da igreja de Atos dos Apóstolos Nascente [...] mas esse espírito e esse coração é algo que o Espírito Santo de Deus produz, se nós o tivermos."
A lição fundamental da igreja nascente, mesmo considerando as vastas diferenças culturais, históricas e socioeconômicas de hoje, é a necessidade de preservar esse sentimento e essa essência. É o Espírito que deve mover os corações a agir, a contribuir e a servir, e não a imposição de uma estrutura humana.
Esse Espírito gera temor (reverência) e um desejo de transformação. A igreja primitiva é descrita como uma "reunião de pessoas que não se aceitam como elas são", mas que, quebrantadas, buscam ser como Cristo.
O desafio para qualquer comunidade de fé hoje é, portanto, não se afastar desse sentimento original. Como Lucas escreveu a Teófilo décadas após os eventos, o objetivo era relembrar como tudo começou, para que o "espírito" daquela igreja nascente – focado em Cristo, na comunhão profunda e no temor reverente – jamais fosse perdido.
A Casa da Rocha. #06 - O espírito da igreja que nascia - Zé Bruno - Meu caro amigo 2. Disponível em: https://www.youtube.com/live/YnCFgpOA0-0?si=92LUCNKSFkJeiJQ9