1. A Questão Pós-Niceia: Se Jesus é Deus, Como Ele é Homem?

O Concílio de Niceia (325 d.C.) havia selado a doutrina fundamental: Jesus Cristo é "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", da mesma substância do Pai (homoousios). A heresia ariana, que O via como uma criatura, foi condenada.

No entanto, ao afirmar categoricamente a plena divindade de Cristo, Niceia abriu uma nova e inevitável questão teológica. Se Ele é 100% Deus, como podemos entender a Sua plena humanidade, que as Escrituras também afirmam tão claramente?

"Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem." (1 Timóteo 2:5, Almeida Revista e Atualizada)

"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós..." (João 1:14, ARA)

A Igreja agora enfrentava o desafio de explicar como essas duas naturezas—divina e humana—coexistiam em Jesus. Como o Deus infinito, que sustenta o universo, pôde ser um bebê indefeso em uma manjedoura? Como o Deus onisciente pôde, como homem, "crescer em sabedoria" (Lucas 2:52)?

Duas tendências perigosas começaram a surgir:

  1. Alguns (como os Apolinarianos) enfatizavam tanto a divindade que acabavam diminuindo a humanidade de Cristo, sugerindo que o Logos (o Verbo) divino teria tomado o lugar da mente ou alma humana.
  2. Outros, tentando preservar a distinção das naturezas, corriam o risco de separá-las a ponto de transformar Cristo em duas pessoas diferentes.

Foi esta segunda tendência, levada ao extremo por um homem chamado Nestório, que incendiou o debate e tornou o Concílio de Éfeso uma necessidade urgente.


2. A Controvérsia de Nestório e o Título Christotokos (Mãe de Cristo)

A crise eclodiu em 428 d.C., quando Nestório foi nomeado Patriarca de Constantinopla, a capital do Império. Ele era um pregador eloquente da escola de Antioquia, uma tradição teológica que, em sua ânsia de proteger a humanidade de Cristo, tendia a enfatizar a distinção entre as naturezas divina e humana.

Nestório levou essa ênfase a um extremo perigoso. Ele ensinava que em Cristo havia duas naturezas tão distintas que eram, na prática, duas pessoas (em grego, prosopoi) separadas.

Segundo ele, havia o "homem Jesus" (nascido de Maria) e o "Logos divino" (o Filho de Deus). Essas duas pessoas estariam unidas apenas por uma "conjunção" moral ou uma "habitação", como se o Logos divino morasse no homem Jesus da mesma forma que Deus habita nos santos, embora em um grau muito maior.

Essa visão teológica teve uma consequência imediata e pública: a rejeição do título Theotokos (em grego, "Portadora de Deus" ou "Mãe de Deus"), que já era usado na devoção popular e nos escritos da Igreja há gerações.

Nestório argumentava:

"Maria não deu à luz a Divindade... Ela deu à luz um homem que era um instrumento para a Divindade."

Ele insistia que ela deveria ser chamada apenas de Christotokos ("Mãe de Cristo" ou "Mãe do homem Jesus"). Para ele, chamar Maria de "Mãe de Deus" era uma blasfêmia pagã, como se um ser humano pudesse gerar o Criador eterno.

O que Nestório não percebeu é que a maternidade se refere à pessoa, não à natureza. Uma mãe não dá à luz apenas um "corpo humano", mas uma "pessoa humana". Se em Cristo houvesse duas pessoas, Nestório estaria certo. Mas se Cristo é uma Pessoa única, então Maria é Mãe dessa Pessoa.

A pregação de Nestório causou um escândalo imediato, pois o povo simples entendeu o que os teólogos confirmariam: se Maria não é a Mãe de Deus, então o Filho que ela carregou não é Deus. Isso minava a própria essência do Evangelho.

"Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei..." (Gálatas 4:4, ARA)

A Escritura diz que Deus enviou "seu Filho", e este Filho foi "nascido de mulher". O sujeito que nasceu de Maria era o Filho eterno de Deus.


3. A Defesa de Cirilo: Theotokos (Mãe de Deus) Como Chave da Salvação

Do outro lado do Mediterrâneo, São Cirilo, o Patriarca de Alexandria, ouviu os ensinamentos de Nestório com alarme. Cirilo vinha da tradição teológica alexandrina, que sempre enfatizou a unidade de Cristo e o mistério de que foi o próprio Logos (o Verbo) divino quem "se fez carne".

Para Cirilo, a recusa de Nestório em chamar Maria de Theotokos não era uma pequena disputa sobre títulos; era um ataque direto ao coração do Evangelho e à certeza da nossa salvação.

O argumento de Cirilo era poderosamente soteriológico (focado na salvação). Ele se baseava no princípio estabelecido pelos pais da Igreja anteriores: "Aquilo que não é assumido [por Deus] não pode ser curado [salvo]."

  1. Se Cristo fossem duas pessoas separadas (um homem Jesus e um Deus Logos), como Nestório sugeria, então a natureza humana que morreu na cruz seria apenas a de um homem. A morte de um simples homem, mesmo um homem perfeito, não teria poder para salvar toda a humanidade.
  2. O Logos divino não poderia nos salvar "à distância". Para redimir nossa natureza humana caída, o Filho de Deus teve que assumi-la para Si mesmo, unindo-a inseparavelmente à Sua própria Pessoa divina.

Portanto, o bebê no ventre de Maria era, desde o primeiro instante, a Pessoa única do Filho de Deus habitando uma natureza humana que Ele tomou dela.

Cirilo argumentou que o título Theotokos (Mãe de Deus) era a muralha que protegia essa verdade.

  • Não significa que Maria é a origem da Divindade de Cristo (que é eterna).
  • Significa que a Pessoa que ela gerou em sua humanidade é Deus.

A prova bíblica mais clara para Cirilo veio da inspiração do Espírito Santo na boca de Isabel, que, ao saudar Maria, exclamou:

"Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe do meu Senhor?" (Lucas 1:43, Almeida Revista e Atualizada)

Naquele tempo e contexto, o título "Senhor" (Kyrios) era usado inequivocamente para se referir a Deus (Yahweh). Isabel, cheia do Espírito, não a chamou de "mãe do meu mestre" ou "mãe do profeta", mas "mãe do meu Senhor".

A batalha teológica estava definida. De um lado, Nestório, com sua visão de duas pessoas separadas (Christotokos). Do outro, Cirilo, com a fé na Pessoa única da Encarnação (Theotokos).


4. A Resolução de Éfeso: A Afirmação da "União Hipostática"

No ano de 431 d.C., o Imperador Teodósio II convocou o Terceiro Concílio Ecumênico na cidade de Éfeso. O clima era tenso e a política eclesiástica era complexa, mas a questão teológica era clara e urgente.

Sob a forte liderança de São Cirilo de Alexandria, o Concílio agiu rapidamente. Eles revisaram os ensinamentos de Nestório, comparando-os com a fé estabelecida em Niceia e com os testemunhos dos pais da Igreja.

A conclusão foi esmagadora: a doutrina de Nestório, ao dividir Cristo em duas pessoas (uma divina e uma humana), era uma negação da Encarnação. Ela destruía a ponte entre Deus e a humanidade, pois se fosse apenas o "homem Jesus" que sofreu e morreu, estaríamos perdidos.

O Concílio de Éfeso condenou solenemente os ensinamentos de Nestório como heréticos. Em sua decisão, o Concílio afirmou e ratificou o título que estava no centro da disputa: Maria é, e deve ser chamada, Theotokos (Mãe de Deus).

Esta proclamação não foi uma exaltação de Maria acima de Deus, mas a defesa teológica da identidade de Jesus. Ao chamá-la de Theotokos, a Igreja declarou para sempre que:

Jesus Cristo é uma única e indivisível Pessoa.

Nessa única Pessoa Divina (o Filho eterno de Deus), coexistem duas naturezas perfeitas e distintas — uma Divina e uma Humana — sem confusão, sem mudança e sem separação.

Este mistério profundo recebeu o nome teológico de "União Hipostática". Hipóstase é o termo grego para "pessoa" ou "subsistência". A União Hipostática significa que a natureza humana foi unida à Pessoa (Hipóstase) divina do Filho de Deus no momento da concepção.

O Concílio de Éfeso, portanto, garantiu que o Cristo que adoramos é o mesmo que foi profetizado, o mesmo que nasceu em Belém e o mesmo que morreu no Calvário. Não adoramos um homem que "se tornou" divino, nem um Deus que "fingiu" ser homem. Adoramos o Deus-Homem, Jesus Cristo, o Verbo que se fez carne — nosso único Senhor e Salvador.


1700 ANOS DO CONCÍLIO DE NICÉIA: PE. EDUARDO, STHATIS E SAYÃO - Inteligencia Ltda. Podcast #1698, https://www.youtube.com/watch?v=Sh6L3n2V1_4

Avatar de diego
há 3 horas
Matéria: Bíblia
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