1. O Fundamento Comum: Maria no Novo Testamento
Antes de qualquer dogma ou tradição denominacional, existe a Maria das Escrituras. Todas as correntes do cristianismo—Católica, Ortodoxa e Protestante—baseiam sua compreensão inicial de Maria neste retrato bíblico. O Novo Testamento, embora focado inteiramente na pessoa e obra de Jesus Cristo, apresenta Sua mãe em momentos-chave que revelam seu papel único na história da salvação.
O Vaso Escolhido pela Graça O Evangelho de Lucas nos apresenta a Anunciação, o momento definidor de Maria. Ela é saudada pelo anjo Gabriel com palavras de significado profundo:
"Alegra-te, muito favorecida [em grego: kecharitōmenē]! O Senhor é contigo." (Lucas 1:28, Almeida Revista e Atualizada)
Independentemente das interpretações teológicas posteriores sobre esta "graça", o texto é claro: Maria foi singularmente escolhida e agraciada por Deus para a tarefa mais sublime.
O Modelo da Fé Obediente Diante da notícia impossível—uma virgem conceber o Filho de Deus—a resposta de Maria define o padrão da fé. Ela não confia em seu próprio entendimento, mas se submete inteiramente ao plano divino:
"Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra." (Lucas 1:38, ARA)
Este "sim" (ou Fiat, em latim) é, para todas as tradições, o exemplo supremo de obediência e cooperação humana com a vontade de Deus.
A Portadora do Senhor e a Profetisa Na Visitação, Maria é reconhecida por Isabel, que, cheia do Espírito Santo, entende a identidade do filho que Maria carrega. Isabel a saúda com palavras que ecoariam pelo Concílio de Éfeso:
"Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe do meu Senhor?" (Lucas 1:43, ARA)
Em resposta, Maria entoa o Magnificat, onde ela mesma, inspirada, profetiza seu próprio legado:
"Pois atentou na humildade da sua serva; porquanto, desde agora, todas as gerações me chamarão bem-aventurada." (Lucas 1:48, ARA)
A Presença Fiel Maria não desaparece após o nascimento de Cristo. Ela está presente em momentos cruciais:
- Em Caná (João 2): Ela intercede pelos noivos, demonstrando sua sensibilidade e confiança no poder de seu Filho, a quem ela diz: "Fazei tudo quanto ele vos disser."
- Aos pés da Cruz (João 19): Ela permanece fiel no momento da agonia total, onde Jesus a entrega aos cuidados do discípulo amado, tornando-a um símbolo da Igreja.
- No Cenáculo (Atos 1): Ela está unida em oração com os apóstolos, aguardando a vinda do Espírito Santo.
Este é o retrato comum: Maria é a serva humilde, a virgem fiel, a discípula obediente, a mãe sofredora e a "bem-aventurada" escolhida por Deus. É a partir desta base compartilhada que as diferentes tradições cristãs constroem suas doutrinas teológicas.
2. A Posição Católica Romana: Os Quatro Dogmas Marianos
Para a Igreja Católica, o papel de Maria na história da salvação não foi meramente biológico; foi uma participação teológica única. A compreensão de Maria é desenvolvida através da Sagrada Tradição e da autoridade de ensino da Igreja (o Magistério), que interpreta as Escrituras.
Estes são os quatro dogmas marianos:
1. A Maternidade Divina (Theotokos)
- O que é: Este é o dogma fundamental e o mais antigo, definido no Concílio de Éfeso (431 d.C.). Declara que Maria é verdadeiramente a "Mãe de Deus" (em grego, Theotokos).
- Fundamento Teológico: Como exploramos anteriormente, este dogma é tanto sobre Cristo quanto sobre Maria. Ele defende a Pessoa única de Jesus. Como a pessoa que ela carregou em seu ventre é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Filho eterno de Deus, ela é corretamente chamada de Mãe de Deus.
2. A Virgindade Perpétua
- O que é: A Igreja ensina que Maria foi virgem antes, durante e perpetuamente depois do nascimento de Jesus.
- Fundamento Teológico: Este dogma afirma que a concepção de Jesus foi milagrosa e obra do Espírito Santo, sem semente humana (virgindade antes do parto). Também afirma que o próprio parto foi milagroso, não violando a integridade física dela (virgindade durante o parto). Por fim, afirma que ela permaneceu virgem por toda a sua vida, como sinal de sua total consagração a Deus (depois do parto).
- Sobre os "Irmãos de Jesus": A Igreja Católica, assim como a Ortodoxa e os primeiros Reformadores Protestantes (incluindo Lutero e Calvino), interpreta a palavra grega adelphos (irmão) em seu sentido mais amplo, comum na cultura semítica, referindo-se a parentes próximos, como primos (cf. Gênesis 14:14, onde Ló, sobrinho de Abraão, é chamado de "irmão").
3. A Imaculada Conceição
- O que é: Definido pelo Papa Pio IX em 1854 (Bula Ineffabilis Deus), este dogma ensina que Maria, desde o primeiro instante de sua própria concepção no ventre de sua mãe (Santa Ana), foi preservada imune de toda mancha de pecado original.
- Erro Comum: Este dogma não se refere à concepção de Jesus (que é a Encarnação), mas à concepção de Maria.
- Fundamento Teológico: A lógica católica é que, para ser o "tabernáculo" digno de carregar o Deus Santíssimo, era apropriado que o vaso escolhido fosse perfeitamente puro. Ela foi redimida por Cristo, mas de uma forma "preventiva": foi-Lhe aplicada a graça da salvação de Cristo em antecipação, no momento de sua concepção.
4. A Assunção
- O que é: Este é o dogma mais recente, definido pelo Papa Pio XII em 1950 (Bula Munificentissimus Deus). Ensina que a Virgem Maria, "tendo completado o curso de sua vida terrena, foi assumida de corpo e alma à glória celestial".
- Fundamento Teológico: Se a morte e a corrupção do corpo são consequências do pecado (Romanos 6:23), e se Maria foi preservada do pecado original (a Imaculada Conceição), era teologicamente "conveniente" que seu corpo—o corpo que deu carne ao Filho de Deus—não sofresse a corrupção da sepultura. A Assunção é vista como a participação plena de Maria na Ressurreição de seu Filho.
Para os católicos, Maria é venerada com uma honra especial chamada hiperdulia (uma veneração acima de todos os outros santos e anjos), mas que é essencialmente diferente da latria (adoração), que é devida somente a Deus.
3. A Posição Ortodoxa Oriental: A Honra da Theotokos
A fé Ortodoxa está profundamente imersa na veneração de Maria, vista como a ponte perfeita entre Deus e a humanidade através da Encarnação. Para os ortodoxos, a honra dada a Maria não é opcional, mas uma parte essencial da fé e da liturgia.
A Theotokos e Panagia Assim como para os católicos, o título Theotokos (Mãe de Deus), definido em Éfeso, é o centro da mariologia ortodoxa. É o título mais comum e reverenciado usado para ela.
Além disso, ela é frequentemente chamada de Panagia (pronuncia-se Pana-YI-a), que significa "Toda Santa". Isso reflete a crença ortodoxa de que ela é o ser humano mais exaltado e santificado que já existiu, tendo sido preparada por Deus para sua missão.
Similaridades com o Catolicismo A Ortodoxia compartilha firmemente duas das crenças centrais católicas:
- A Maternidade Divina (Theotokos): Exatamente como definido em Éfeso.
- A Virgindade Perpétua: Os ortodoxos creem firmemente que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto, e referem-se a ela como Aeiparthenos ("Sempre Virgem").
Diferenças Teológicas Sensiveis É nos outros dois pontos que as diferenças aparecem, menos no quê se acredita e mais no como e no porquê.
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Sobre a Imaculada Conceição: A Ortodoxia não aceita o dogma católico da Imaculada Conceição.
- Razão Teológica: A Ortodoxia tem uma compreensão diferente do "Pecado Original". Eles não o veem como uma "mancha de culpa" herdada de Adão (como no Ocidente agostiniano), mas como uma herança da mortalidade e da corrupção (a natureza caída).
- Crença Ortodoxa: Maria, portanto, nasceu como qualquer outro ser humano, herdando essa natureza mortal e caída. No entanto, ela viveu uma vida de santidade pessoal impecável. A crença ortodoxa predominante é que Maria foi purificada de toda inclinação ao pecado no momento da Anunciação, quando o Espírito Santo desceu sobre ela (Lucas 1:35).
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Sobre a Assunção: A Ortodoxia celebra com grande solenidade a Dormição da Theotokos (uma de suas 12 Grandes Festas).
- Crença Ortodoxa: A Tradição ortodoxa ensina claramente que Maria morreu uma morte natural (ela "adormeceu", daí o termo "Dormição"). Ela foi sepultada pelos apóstolos e, no terceiro dia, quando abriram seu túmulo (para que o Apóstolo Tomé pudesse venerá-la), seu corpo havia desaparecido.
- Diferença Sutil: Eles creem firmemente que ela foi ressuscitada por seu Filho e levada (assumida) em corpo e alma para o céu. A diferença do dogma católico (que deixa em aberto se ela morreu ou não) é a ênfase ortodoxa na realidade de sua morte humana, que ela compartilhou com toda a humanidade, antes de ser glorificada.
Em resumo, a veneração ortodoxa a Maria é tão elevada quanto a católica, mas é definida mais pela liturgia e pela tradição patrística do que por dogmas formais e precisos como os do catolicismo romano.
4. A Posição Protestante: Honra à Serva e o Foco no Sola Scriptura
A Reforma Protestante do século XVI redefiniu a autoridade teológica, estabelecendo o princípio do Sola Scriptura (Somente a Escritura). Para o Protestantismo, a Bíblia é a única fonte infalível de fé e doutrina.
Portanto, a compreensão de Maria é derivada exclusivamente do que está explicitamente registrado nas Escrituras, e qualquer doutrina que não possa ser provada por ela não é considerada vinculativa.
O Que o Protestantismo Aceita e Honra O Protestantismo afirma positivamente o retrato bíblico de Maria:
- Ela é honrada como a "bem-aventurada" (Lucas 1:48) e o maior exemplo de fé e humildade.
- Seu "sim" a Deus ("Eis aqui a serva do Senhor", Lucas 1:38) é visto como o modelo para todos os crentes.
- Sua concepção virginal de Jesus é um artigo de fé não negociável, central para a Encarnação (Mateus 1:23; Lucas 1:34-35).
O Que o Protestantismo Rejeita (e Por Quê) Guiado pelo Sola Scriptura, o Protestantismo rejeita os dogmas marianos definidos pela Igreja Católica (e, em parte, pela Ortodoxa) por considerá-los tradições extrabíblicas.
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Rejeição da Imaculada Conceição e da Assunção: A principal objeção é a ausência total de qualquer menção a esses eventos nas Escrituras. São vistas como tradições humanas que, embora piedosas para alguns, não podem ser impostas como doutrina divinamente revelada.
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Rejeição da Virgindade Perpétua: Embora os primeiros reformadores (como Lutero e Calvino) pessoalmente acreditassem ou estivessem abertos a essa ideia, o protestantismo posterior, em geral, a rejeita. A razão é a leitura direta de passagens que mencionam os "irmãos" (adelphoi) e irmãs de Jesus.
"Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de Judas, e de Simão? E não estão aqui conosco suas irmãs?" (Marcos 6:3, Almeida Revista e Atualizada)
Enquanto católicos e ortodoxos veem "irmãos" como "parentes" (primos), a interpretação protestante majoritária, focada no sentido mais literal, entende que Maria e José tiveram outros filhos após o nascimento milagroso de Jesus.
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Rejeição de Theotokos (Mãe de Deus): Este é o ponto mais complexo. Como vimos, os reformadores originais aceitaram o significado teológico de Éfeso (que a pessoa nascida era Deus). No entanto, o protestantismo moderno e evangélico rejeita ativamente o título "Mãe de Deus".
- Razão: É considerado antibíblico (o termo não aparece na Bíblia) e teologicamente confuso. Teme-se que o título sugira que Maria é a origem da divindade ou uma deusa-mãe. Prefere-se esmagadoramente o título bíblico "mãe de Jesus" ou "mãe do Senhor" (Lucas 1:43).
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Rejeição da Intercessão Mariana (Mediação): Este é o ponto de maior separação. O Protestantismo rejeita veementemente qualquer veneração (hiperdulia) ou pedido de intercessão a Maria (ou a qualquer santo), considerando-o uma violação dos princípios do Sola Christus (Cristo Somente) e Soli Deo Gloria (Glória Somente a Deus). A fé protestante baseia-se na crença de que há apenas um mediador:
"Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem." (1 Timóteo 2:5, ARA)
Em resumo, para o Protestantismo, Maria é a maior das servas do Senhor e um modelo de fé, mas ela permanece estritamente do lado da criação. A honra é dada a ela, mas a adoração e a oração são reservadas exclusivamente ao Deus Triúno.
1700 ANOS DO CONCÍLIO DE NICÉIA: PE. EDUARDO, STHATIS E SAYÃO - Inteligencia Ltda. Podcast #1698, https://www.youtube.com/watch?v=Sh6L3n2V1_4