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O Choque de Paradigmas: O Novo Sistema Tributário e o Desafio da Transição

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, marcou o início de uma transformação profunda na arquitetura fiscal brasileira. Este marco legal promete a transição de um sistema historicamente arcaico, cumulativo e fragmentado para um modelo moderno, alinhado aos padrões internacionais de Tributação sobre o Valor Agregado (IVA).

No cerne dessa reformulação estão dois novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre Estados e Municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal. Ambos foram desenhados sob os princípios da simplicidade, transparência, neutralidade e não cumulatividade plena.

Contudo, a implementação prática desse novo modelo, regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, revela desafios estruturais significativos. O principal deles reside na convivência forçada entre dois regimes tributários diametralmente opostos durante um longo período de transição.

A Arquitetura da Transição e o Cronograma

A mudança para o novo sistema não ocorre de forma abrupta. O legislador optou por um processo gradual, onde o sistema que nasce (IBS/CBS) convive com o sistema que morre (ICMS/ISS). Esse período, estipulado entre 2026 e 2032, apresenta fases distintas que geram complexidades operacionais únicas para os contribuintes e para a administração pública:

  • 2026 (Ano Teste): Introdução do IBS à alíquota de 0,1% e da CBS à alíquota de 0,9%, totalizando uma carga de 1%. O objetivo declarado é a calibração dos sistemas tecnológicos e das alíquotas de referência, sem finalidade arrecadatória líquida, uma vez que os valores pagos são compensáveis com o PIS/COFINS.
  • 2027 (Extinção do PIS/COFINS): A CBS entra em vigor plenamente, substituindo as antigas contribuições federais. Simultaneamente, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) é reduzido a zero para a maioria dos produtos.
  • 2029 a 2032 (Transição Gradual): Inicia-se a redução progressiva das alíquotas do ICMS e do ISS na proporção de 1/10 por ano, concomitantemente à elevação das alíquotas do IBS, até a extinção completa do antigo regime prevista para 2033.

A Antinomia Estrutural

É neste cenário de sobreposição que emerge uma controvérsia crítica. Enquanto o novo modelo busca a transparência e a não cumulatividade, o antigo sistema ainda opera sob lógicas de "cálculo por dentro" e cumulatividade parcial.

A interação entre esses dois mundos cria um vácuo legislativo perigoso. A questão central que se impõe é se os novos tributos (IBS e CBS), que possuem metodologia de cálculo "por fora", devem ou não compor a base de cálculo do ICMS, que historicamente incide sobre si mesmo e sobre outros tributos.

"A espinha dorsal dessa transformação reside na criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) [...] e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) [...], ambos regidos pelos princípios da simplicidade, transparência, neutralidade e não cumulatividade plena."

Essa indefinição não é apenas um detalhe técnico; ela representa um risco à integridade dos objetivos fundamentais da reforma, ameaçando perpetuar distorções econômicas justamente no momento em que o país busca eliminá-las.


Antinomia Técnica: O "Cálculo por Dentro" versus o "Cálculo por Fora"

A raiz do conflito que ameaça o período de transição reside em um silêncio eloquente da legislação e no choque entre metodologias de cálculo tributário incompatíveis. Embora a Emenda Constitucional 132/2023 aponte para a modernidade, a inércia legislativa permitiu que velhas práticas do sistema tributário nacional ressurgissem.

O Vácuo Legislativo e a Lei Kandir

A Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta os novos tributos, não trouxe uma vedação expressa à inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS. É importante notar que a versão original da PEC 45/2019 continha dispositivos que proibiam essa prática, mas tais trechos foram suprimidos durante o trâmite no Congresso Nacional.

Esse vácuo abriu espaço para interpretações divergentes. As administrações tributárias estaduais, visando a manutenção da arrecadação nominal, recorrem à literalidade da Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996). O argumento fiscalista baseia-se no Artigo 13, § 1º, inciso I, que estabelece:

"Integram a base de cálculo do imposto: o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle; e o valor dos demais impostos, taxas, contribuições e despesas aduaneiras incidentes sobre a prestação ou operação." (LC 87/96)

Sob essa ótica positivista, o IBS e a CBS são classificados como "demais impostos e contribuições", devendo, portanto, inflar a base do ICMS. Este entendimento já foi formalizado, por exemplo, pelo Estado de Pernambuco na Resolução de Consulta nº 39/2025, determinando a inclusão já no ano-teste de 2026.

O Conflito Metodológico: Gross-up vs. Valor Líquido

Para compreender a gravidade econômica dessa interpretação, é imperativo dissecar as diferenças matemáticas entre os regimes:

  1. O Sistema Antigo (ICMS - "Cálculo por Dentro"): O Brasil adota a sistemática do gross-up. O imposto é considerado parte do preço da mercadoria, integrando sua própria base. Isso cria uma distorção entre a alíquota nominal (escrita na lei) e a alíquota efetiva (peso real).

    • Exemplo: Uma alíquota nominal de 18% resulta em uma carga efetiva de aproximadamente 21,95% sobre o valor da mercadoria.
  2. O Sistema Novo (IBS/CBS - "Cálculo por Fora"): Alinhado às práticas da OCDE, o novo sistema incide sobre o valor líquido da operação. A alíquota nominal é idêntica à efetiva, garantindo transparência total.

A tentativa de inserir o IBS e a CBS (calculados por fora) na base do ICMS (calculado por dentro) gera um hibridismo nocivo. Na prática, o Estado passaria a cobrar ICMS não apenas sobre o valor do produto, mas também sobre o valor dos novos tributos federais e subnacionais.

Essa configuração caracteriza a "tributação sobre tributação" (tax on tax), ampliando artificialmente o custo final para o consumidor e gerando um resíduo tributário que a reforma prometeu eliminar. Cria-se, assim, um efeito cascata oculto, onde o consumidor paga impostos sobre valores que não correspondem à riqueza gerada ou ao produto adquirido, mas sim à própria carga tributária.


Análise Jurídica: Princípios Constitucionais e a Analogia com a "Tese do Século"

A batalha jurídica que se desenha no horizonte tributário brasileiro opõe duas visões antagônicas: de um lado, a leitura positivista e anacrônica da legislação infraconstitucional (Lei Kandir); do outro, uma interpretação sistemática e finalística da nova ordem constitucional inaugurada pela Emenda Constitucional nº 132/2023.

A tese da exclusão do IBS e da CBS da base de cálculo do ICMS não se sustenta apenas em desejos de eficiência econômica, mas em pilares jurídicos robustos, ancorados na jurisprudência da Suprema Corte e nos novos dogmas constitucionais.

O Princípio da Transparência (Art. 150, § 5º, CF)

A Reforma Tributária elevou a transparência ao status de princípio constitucional fundamental. O novo texto da Constituição Federal exige clareza absoluta para o consumidor final sobre a carga tributária incidente.

A manutenção da inclusão do IBS e da CBS na base do ICMS viola frontalmente esse mandamento. Ao embutir os novos tributos dentro da base do imposto estadual, obscurece-se a carga real suportada pelo contribuinte. Se o consumidor visualiza uma alíquota de 26,5% de IVA Dual e uma alíquota de 18% de ICMS, ele jamais imaginará que o imposto estadual está incidindo sobre o federal, criando um efeito cascata oculto.

"A Constituição Federal, alterada pela reforma, exige que os tributos sejam transparentes para o consumidor final. A inclusão do IBS/CBS na base do ICMS obscurece a carga tributária real."

A "Tese do Século 2.0": Aplicação do Tema 69 do STF

O argumento jurídico mais potente contra a inclusão reside na aplicação analógica do entendimento já consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706, conhecido como a "Tese do Século" (Tema 69).

Naquela ocasião, a Corte Suprema definiu que "o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da COFINS". A ratio decidendi (razão de decidir) utilizada pelos ministros é perfeitamente aplicável ao conflito atual:

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  1. Natureza do Valor: O valor arrecadado a título de imposto não constitui faturamento ou receita bruta da empresa.
  2. Mero Trânsito Contábil: Tais valores apenas transitam pelo caixa da companhia com destino aos cofres públicos. A empresa atua como mera depositária ou arrecadadora, não como titular daquela riqueza.

Aplicando-se essa lógica ao cenário da transição:

  • O valor correspondente ao IBS e à CBS é destinado ao Comitê Gestor do IBS e à União Federal, respectivamente.
  • Esse montante não integra o patrimônio do vendedor; é um ingresso de terceiros.
  • Logo, esse valor não pode integrar o "valor da operação" para fins de incidência do ICMS.

Tributar esses valores via ICMS equivaleria a tributar uma riqueza inexistente para o contribuinte. Juristas e escritórios especializados já alertam para o surgimento da "Tese do Século 2.0" ou "Tese da Reforma". Se o Legislativo não corrigir essa distorção, o Judiciário será inevitavelmente provocado a fazê-lo, mas ao custo de anos de insegurança jurídica e passivos contingentes para os Estados.


Impactos Econômicos Invisíveis: Inflação, Precificação e Fluxo de Caixa

A discussão sobre a base de cálculo transcende o formalismo jurídico; ela possui implicações econômicas imediatas e devastadoras para a competitividade nacional e para o controle inflacionário. A decisão de incluir o IBS e a CBS na base do ICMS não afeta apenas os departamentos fiscais das empresas, mas chega diretamente ao bolso do consumidor e ao caixa das organizações.

O Efeito Multiplicador Inflacionário

A inclusão de um imposto na base de outro gera uma espiral de custos conhecida como efeito cascata. Em um cenário onde a alíquota padrão do IVA (IBS+CBS) é estimada em cerca de 26,5% (segundo o Ministério da Fazenda) e a do ICMS média em 18% (cálculo "por dentro"), a sobreposição dessas bases cria uma distorção aritmética severa.

Para ilustrar o impacto financeiro dessa decisão política, considere a simulação de uma operação hipotética:

Componente Cenário A: Exclusão (Correto) Cenário B: Inclusão (Distorcido) Variação
Valor Líquido R$ 1.000,00 R$ 1.000,00 -
IBS + CBS (26,5%) R$ 265,00 R$ 265,00 0
Base de Cálculo ICMS R$ 1.219,51 R$ 1.542,68 +26,5%
Valor do ICMS (18%) R$ 219,51 R$ 277,68 +26,5%
Preço Final R$ 1.484,51 R$ 1.542,68 +3,9%
Carga Tributária Total 48,4% 54,2% +5,8 p.p.

Nota: No Cenário B, o aumento de quase 6 pontos percentuais na carga tributária total e o encarecimento de quase 4% no preço final decorrem puramente da metodologia de cálculo, sem qualquer aumento de alíquota nominal ou margem de lucro.

Esse custo adicional pressiona diretamente os índices de inflação (IPCA), reduzindo o poder de compra das famílias sem gerar contrapartida em serviços ou produtos.

Distorção na Formação de Preços e Contratos de Longo Prazo

A incerteza sobre a base de cálculo afeta a precificação de contratos de longo prazo, essenciais em setores como energia, telecomunicações e infraestrutura.

Empresas que precificarem seus serviços considerando a exclusão (preço menor) correm o risco de assumir passivos tributários gigantescos caso a tese da inclusão prevaleça. Por outro lado, aquelas que precificarem considerando a inclusão (preço maior) perdem competitividade ou transferem ineficiência para toda a cadeia produtiva.

Adicionalmente, a complexidade algorítmica de calcular um preço onde "o imposto A está dentro da base do imposto B, mas o imposto B não está na base do imposto A" exige adaptações custosas nos sistemas de gestão (ERPs), elevando o chamado "Custo Brasil" burocrático.

O Impacto no Fluxo de Caixa e o "Split Payment"

Um dos pilares operacionais da Reforma Tributária é o Split Payment (Pagamento Dividido), mecanismo onde o imposto é retido automaticamente no momento da liquidação financeira da transação.

Se o valor do ICMS for artificialmente inflado pela inclusão do IBS/CBS na sua base, o montante retido na fonte será significativamente maior, drenando o capital de giro das empresas instantaneamente.

"Embora a reforma prometa crédito amplo, a devolução desses créditos nem sempre é imediata [...]. O descasamento entre o pagamento inflado (via split payment) e a recuperação do crédito pode asfixiar financeiramente pequenas e médias empresas."

Essa dinâmica cria um risco de iliquidez operacional, especialmente para negócios com margens apertadas e menor capacidade de financiamento bancário, contrariando o objetivo de fomento econômico da reforma.


O Cenário Político e Legislativo: O Papel do PLP 16/2025

Diante da insegurança jurídica instalada e da fragmentação de entendimentos entre os entes federativos — uma verdadeira "guerra fiscal interpretativa" — a solução via Poder Legislativo tornou-se a via mais rápida e segura para estancar a crise antes que ela se judicialize massivamente.

O Projeto de Lei Complementar nº 16/2025

Apresentado em fevereiro de 2025, o PLP 16/2025, de autoria do Deputado Gilson Marques (NOVO-SC) e outros coautores, surge como a medida corretiva para resolver a controvérsia. O projeto atua de forma cirúrgica, propondo alterações na Lei Kandir (LC 87/96) e na Lei Complementar nº 214/2025 para excluir explicitamente o IBS e a CBS das bases de cálculo do ICMS, ISS e IPI.

Os pontos centrais da proposta são:

  1. Alteração da Lei Kandir: Insere o § 8º ao Art. 13 da LC 87/96, declarando inequivocamente que "não integram a base de cálculo do imposto os montantes dos tributos previstos nos arts. 156-A (IBS) e 195, V (CBS) da Constituição Federal".
  2. Alteração da LC 214/2025: Reforça a vedação de inclusão nas bases dos impostos estaduais e municipais através de novos dispositivos.

A justificativa do projeto é pragmática: a inclusão violaria o princípio da neutralidade e geraria um contencioso tributário ingovernável, prejudicando o ambiente de negócios nacional.

A Resistência do COMSEFAZ e a "Neutralidade de Receita"

A tramitação do projeto enfrenta forte oposição política, articulada principalmente pelo Comitê Nacional de Secretários de Fazenda (COMSEFAZ). O argumento central dos Estados é a manutenção da "neutralidade de receita".

A lógica apresentada é que, no sistema atual, tributos como PIS/COFINS compõem a base do ICMS. Retirar os sucessores desses tributos (IBS/CBS) da base representaria, na visão dos secretários, uma perda de arrecadação projetada, desequilibrando as contas públicas estaduais.

Contudo, analistas apontam uma falácia técnica nesse argumento:

"A neutralidade de carga tributária na reforma deve ser buscada através da calibração das alíquotas de referência, e não através da manutenção de distorções na base de cálculo. Se a exclusão do IBS/CBS da base do ICMS reduzir a arrecadação estadual, a ferramenta correta e transparente para compensação é o ajuste na alíquota do ICMS [...], e não a tributação oculta 'por dentro'."

A insistência na base ampliada revela, portanto, uma preferência política por aumentos de carga menos perceptíveis à população do que o ajuste transparente das alíquotas.

Conclusão

A controvérsia sobre a inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS é o primeiro grande teste de integridade da Reforma Tributária brasileira. A decisão final sobre este tema definirá se a transição será marcada pela modernização ou pela perpetuação de vícios arcaicos.

Embora o vácuo legislativo atual permita interpretações oportunistas por parte de alguns estados, a Constituição Federal, lida à luz da jurisprudência do STF e dos princípios da EC 132/2023, aponta para a exclusão. A manutenção da lógica do "imposto sobre imposto" não apenas distorce preços e penaliza o consumo, mas também sabota a simplicidade que a reforma se propôs a entregar.

O caminho para a segurança jurídica e a eficiência econômica passa, necessariamente, pela rejeição administrativa dessa inclusão ou, de forma mais definitiva, pela aprovação do PLP 16/2025. O Brasil não pode se dar ao luxo de implementar um sistema tributário novo carregando as "jabuticabas" do antigo. A exclusão do IBS/CBS da base do ICMS não é apenas uma medida técnica desejável; é um imperativo de coerência para um país que busca modernizar sua economia.

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há 2 horas
Matéria: Direito Tributário
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