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A Peregrinação de Abraão: Lugar, Destino e a Primazia da Companhia Divina

A narrativa bíblica, especificamente no livro de Hebreus, apresenta a fé não apenas como uma crença abstrata, mas como um movimento prático e geográfico. Ao analisarmos o chamado de Abraão, percebemos que um dos definidores do sucesso de um indivíduo é o reconhecimento do seu lugar de atuação. A constância e as raízes profundas pertencem àqueles que sabem onde devem estar, enquanto a inconstância é a marca de quem desconhece o seu propósito.

O texto sagrado relata o início desta jornada de forma enfática:

"Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança; e partiu sem saber para onde ia." (Hebreus 11:8)

A palavra "peregrinou" carrega em si a ideia de caminhar, muitas vezes sem uma direção humana pré-estabelecida. Abraão partiu sem um mapa detalhado do destino, pois quem determinava seus passos era o Deus que o chamou. A ordem divina foi para sair, com a promessa de que a terra seria mostrada posteriormente. Isso revela uma mudança fundamental de paradigma: na dinâmica da fé, o destino é secundário à companhia.

Podemos contrastar essa visão com a mentalidade dos antigos gregos e suas competições olímpicas. Para o atleta grego, o foco estava no pódio, na medalha, na linha de chegada. O sacrifício era válido apenas pela recompensa final da vitória. No entanto, na jornada de fé exemplificada por Abraão, Deus propõe uma lógica inversa: o pódio não é o mais importante. O que garante a chegada e a segurança não é a visibilidade da meta, mas a presença dAquele que caminha ao lado.

O salmista reflete bem essa teologia ao declarar:

"Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo." (Salmos 23:4)

A segurança não reside na ausência de perigos ou na clareza do destino, mas na certeza da companhia divina. Caminhar com Deus implica receber uma inculturação celestial, moldada por ética, moral e caráter. Portanto, não "vale tudo" para chegar em primeiro lugar. O sucesso, sob a ótica da fé, não é conquistar a medalha a qualquer custo, mas manter a integridade durante o percurso. É preferível chegar por último preservando o caráter do que chegar em primeiro tendo-o corrompido.

Essa peregrinação, no entanto, não é um caminhar sem sentido. Ela possui um fundamento sólido. Enquanto muitos aguardam ou buscam coisas sem base, a fé bíblica aguarda uma "cidade que tem fundamentos", da qual Deus é o arquiteto e construtor.

"Porque esperava a cidade que tem fundamentos, da qual o artífice e construtor é Deus." (Hebreus 11:10)

O fundamento dessa espera e dessa caminhada encontra-se nas Escrituras (Sola Scriptura). É através da Palavra que se conhece o Cristo e se gera a fé necessária para peregrinar, habitando em tendas — símbolo da transitoriedade terrena — enquanto se aguarda a promessa eterna, focado não no brilho do prêmio terreno, mas na excelência da companhia do Criador.


A Prova de Fogo: Aparência versus Essência no Sacrifício de Isaque

A jornada da fé não é linear; ela culmina em momentos de definição que as Escrituras chamam de "prova". Ao avançarmos para os versículos 17 e 18 de Hebreus 11, encontramos Abraão diante do desafio supremo: o sacrifício de seu filho da promessa. No entanto, para compreender a magnitude deste evento, é preciso redefinir o conceito de provação.

No contexto espiritual, "provar" transcende a simples testagem de resistência; carrega a ideia de extrair e revelar o que está no interior. Pode-se fazer uma analogia com o ato de beber ou degustar algo para conhecer seu verdadeiro sabor. O cristianismo distingue-se de outras filosofias e religiões justamente por este aspecto: ele não se propõe a mudar apenas a aparência, mas a transformar a essência.

É interessante notar que, quando Jesus iniciou seu ministério terreno, ele não começou pregando em locais de evidente perdição moral, como os prostíbulos ou tavernas da Palestina. Ele começou nas sinagogas. Ele foi aos ambientes religiosos, onde as pessoas possuíam a aparência de piedade, mas careciam da essência divina. A provação, portanto, é o mecanismo de Deus para expor a realidade interna, removendo as máscaras da religiosidade exterior.

"Pela fé Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; aquele que acolheu as promessas estava a ponto de sacrificar o seu unigênito." (Hebreus 11:17)

A provação revela a constituição do caráter. Uma ilustração clássica dessa verdade é a interação da água fervente com diferentes elementos: a mesma água quente que endurece o ovo é a que amolece a batata. A temperatura e o ambiente (a circunstância adversa) são idênticos, mas o resultado é oposto devido à natureza do que está sendo provado. O problema nunca é o fogo da aflição, mas sim o material do qual somos feitos internamente.

No caso de Abraão, a prova revelou uma fé inabalável na soberania da vida. O texto de Hebreus nos oferece um detalhe crucial sobre a teologia do patriarca naquele momento:

"Considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos." (Hebreus 11:19)

Muitas vezes, interpretamos o sacrifício de Isaque focando apenas na provisão do cordeiro substituto. Contudo, a disposição de Abraão ia além. Ele saiu de casa com a determinação de obedecer, mesmo que isso significasse a morte física de seu filho. Ele não contava com uma intervenção que impedisse o ato, mas confiava em uma intervenção que revertesse a morte.

Abraão creu que a sua obediência geraria ressurreição. Ele estava convicto de que as promessas de Deus não poderiam ser anuladas, nem mesmo pela morte. Essa é a essência que a prova revelou: uma confiança absoluta de que Deus é poderoso para trazer vida onde aparentemente só existe o fim. A fé madura não recua diante da "pior notícia"; ela avança, certa de que o Autor da vida tem a última palavra.


Arqueologia do Texto: A Evolução do Conceito de Fé (Emunah) e a Transição do Culto

Para compreender a profundidade da doutrina cristã, muitas vezes é necessário ultrapassar a barreira das traduções e realizar uma verdadeira "arqueologia" no texto original. A Bíblia que temos em mãos hoje, em grande parte, é fruto de traduções que remontam à Vulgata Latina de São Jerônimo (século IV). Embora essenciais para a disseminação do Evangelho, as traduções por vezes adaptam termos que, no original, possuem nuances específicas. Um exemplo claro disso é a palavra "fé".

No Antigo Testamento, escrito majoritariamente em hebraico, a palavra correspondente à fé é Emunah (ou Emun). Surpreendentemente, no texto original hebraico, essa palavra específica aparece apenas duas vezes com essa conotação de fidelidade inabalável e lealdade.

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A primeira ocorrência está em Deuteronômio:

"E disse: Esconderei deles o meu rosto, verei qual será o seu fim; porque são geração de perversidade, filhos em quem não há lealdade [Emun/Fé]." (Deuteronômio 32:20)

A segunda ocorrência é o estopim teológico que conectaria os dois testamentos e fundamentaria a Reforma Protestante séculos depois:

"Eis que a sua alma se incha, não é reta nele; mas o justo viverá pela sua fé [Emunah]." (Habacuque 2:4)

Foi a conexão deste versículo de Habacuque com a revelação paulina em Romanos 1:17 ("O justo viverá por fé") que iluminou a mente de Martinho Lutero. Ele percebeu que a justiça de Deus não é alcançada por esforço humano, mas revelada de fé em fé.

Por que, então, a palavra "fé" aparece centenas de vezes no Novo Testamento e tão raramente no Antigo (como Emunah)? A resposta reside na natureza do relacionamento com Deus. Na Lei, o sistema era baseado na obediência e no cumprimento de rituais; não se exigia "fé" subjetiva para obedecer a uma ordem direta, exigia-se execução. Já na Graça, a dinâmica muda radicalmente: a fé aparece cerca de 300 vezes no Novo Testamento porque ela se torna o fundamento de tudo. Na Lei, o que agrada é o sacrifício; na Graça, "sem fé é impossível agradar a Deus" (Hebreus 11:6).

Essa transição também é visível na evolução do conceito de adoração. Até o tempo de Ana (mãe de Samuel), o culto era intrinsecamente ligado a elementos físicos e sangue: o sacrifício do cordeiro, da pomba, o derramamento cerimonial. Não vemos a "oração" como elemento central de culto no texto original hebraico até o clamor de Ana.

"Ela, pois, com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente." (1 Samuel 1:10)

Ana inaugura uma transição litúrgica: ela recalcula o cerimonial. Ela não tinha um sacrifício físico no momento de sua angústia, então ela ofereceu uma oração. Isso prefigura o que o Apóstolo Paulo ensinaria mais tarde em Romanos 12 sobre o "culto racional". Enquanto o culto da Antiga Aliança dependia de elos físicos e sangue animal, o culto na Nova Aliança é espiritual, fundamentado na oração e na fé em Jesus Cristo.

Portanto, a onipresença da palavra "fé" no Novo Testamento sinaliza que a era da obrigação ritualística deu lugar à era do relacionamento e da confiança. Ninguém é coagido a seguir a Cristo; o convite é para "aquele que quiser". A fé é a resposta voluntária da alma à graça oferecida.


Sola Fide: A Justificação do Ímpio e a Distinção entre Lei e Graça

A doutrina do Sola Fide (Somente a Fé) não é apenas um pilar da Reforma Protestante, mas o grito de libertação do Evangelho contra qualquer tentativa humana de autossalvação. A compreensão da justificação pela fé altera radicalmente a percepção sobre como o ser humano se relaciona com o Divino, movendo-se do campo do mérito para o campo da graça.

O Apóstolo Paulo estabelece essa base de forma cristalina na carta aos Efésios, removendo qualquer possibilidade de jactância humana:

"Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie." (Efésios 2:8-9)

A palavra "dom", no original grego charisma, remete à ideia de um presente imerecido. A salvação é descrita como algo que Deus, metaforicamente, "embrulhou com um laço" e entregou a quem não possuía mérito algum. Na lógica da Lei, o indivíduo recebe o que merece com base no seu trabalho e esforço. Na lógica da Graça, onde o pecado abundou, a graça superabundou.

Para entender a profundidade dessa transição, é necessário analisar a mudança no conceito jurídico de "justificação". No contexto do Antigo Testamento (Deuteronômio 25:1-3), justificar alguém significava declarar sua inocência baseada na realidade dos fatos: o tribunal reconhecia que o indivíduo não cometeu o crime. Era uma constatação de retidão.

No entanto, no Novo Testamento, a justificação assume um caráter escandaloso aos olhos da justiça humana. Deus "justifica o ímpio" (Romanos 4:5). Aqui, o réu é culpado, a dívida existe e não há recursos para pagá-la. A justificação na Nova Aliança não é declarar que o réu é inocente por natureza, mas declarar que a dívida foi assumida por Outro.

"Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus." (2 Coríntios 5:21)

Esta é a "grande troca": Cristo assume a culpa, e o pecador recebe a justiça de Cristo. Não é sobre o trabalho do homem, mas sobre a obra consumada na cruz. Quem trabalha recebe salário como dívida; quem crê recebe justiça como favor.

Essa dinâmica revela a natureza da Graça. Embora alguns teólogos debatam sobre a "Graça Irresistível", a narrativa bíblica muitas vezes apresenta a Graça como algo "constrangedor". O episódio de Zaqueu (Lucas 19) ilustra isso perfeitamente. Jesus não coagiu Zaqueu, nem arrombou a porta de sua casa. A presença graciosa de Jesus constrangeu o coração daquele publicano. Diante da santidade e do amor não merecido, a resposta de Zaqueu foi voluntária e transformadora. A Lei obriga e gera medo; a Graça constrange e gera amor.

Portanto, a filiação espiritual dos cristãos remonta a Abraão, e não a Moisés. Moisés representa a Lei que diz "faça e viva"; Abraão representa a promessa que diz "creia e receba".

"Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão, dizendo: Em ti serão abençoados todos os povos." (Gálatas 3:8)

A bênção não repousa sobre a perfeição da performance humana, mas sobre a perfeição do objeto da nossa fé: Jesus Cristo. Assim, o justo viverá pela fé, seguro não em sua própria capacidade de caminhar, mas na companhia dAquele que garante a chegada.


Cidade IMAFE. Sola Fide | Terça da Parashá com Pr. Adson Belo. https://www.youtube.com/watch?v=SxzXbed2Ujk

Avatar de diego
há 8 horas
Matéria: Bíblia
Artigo

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