1. A Natureza da Ação Penal e o Papel da Vontade da Vítima
No ordenamento jurídico brasileiro, a persecução penal não depende, em sua maioria, da vontade exclusiva da parte ofendida. A compreensão deste conceito é fundamental para entender por que a polícia e o Ministério Público podem — e muitas vezes devem — agir mesmo quando a vítima se recusa a se identificar, a ir à delegacia ou a "prestar queixa".
A chave para essa questão reside na classificação da ação penal. A regra geral no Direito Penal é a Ação Penal Pública Incondicionada. Isso significa que, ao tomar conhecimento de um fato criminoso, o Estado tem o dever de investigar e processar o autor, independentemente de a vítima querer ou não. O titular da ação é o Ministério Público, e o bem jurídico tutelado é considerado relevante para toda a sociedade, não apenas para o indivíduo lesado.
"A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido." (Art. 100 do Código Penal)
Nesse contexto, se uma viatura policial se depara com uma situação de flagrante delito em crimes de ação pública incondicionada — como tráfico de drogas, porte ilegal de armas, homicídio ou tentativa de homicídio —, a condução do suspeito à delegacia e a lavratura do auto de prisão em flagrante independem da presença ou da colaboração de uma vítima específica. Nesses casos, a "vítima" primária é o Estado ou a Saúde Pública.
Entretanto, existem crimes de Ação Penal Pública Condicionada à Representação. Neles, embora o Estado seja o titular da ação, ele precisa de uma "autorização" da vítima para agir. Exemplos comuns são o crime de ameaça (art. 147 do CP) e, em regra, alguns crimes contra a honra.
Nestes cenários, a recusa da vítima em comparecer à delegacia ou em se identificar pode, tecnicamente, impedir a formalização do procedimento policial naquele momento específico, gerando a não ratificação do flagrante ou o arquivamento posterior por falta de condição de procedibilidade. Contudo, essa regra sofre exceções drásticas e importantes quando o contexto envolve violência doméstica e familiar contra a mulher, onde a proteção à integridade física se sobrepõe à autonomia momentânea da vontade da ofendida.
Portanto, a ausência da vítima na delegacia não gera automaticamente a nulidade da ação policial ou a soltura do agente. O delegado de polícia avaliará a natureza do crime: se for incondicionada, o depoimento dos policiais condutores (que possuem fé pública) e a materialidade do fato (objetos apreendidos, lesões visíveis, danos ao patrimônio) são suficientes para sustentar a prisão em flagrante e o início do inquérito policial.
2. Violência Doméstica: A Irrelevância da Recusa em Casos de Lesão Corporal
Um dos cenários mais desafiadores para as autoridades policiais ocorre no contexto da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Frequentemente, ao atenderem um chamado de agressão doméstica, os agentes encontram a vítima ferida ou abalada, mas que, por medo, dependência econômica ou emocional, recusa-se a acompanhar a guarnição até a delegacia ou afirma que "não quer prejudicar o marido".
Neste ponto, a legislação e a jurisprudência superior firmaram um entendimento protetivo rígido: em crimes de lesão corporal praticados no âmbito doméstico contra a mulher, a vontade da vítima é irrelevante para o início da ação penal.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou essa questão, reconhecendo que a natureza desses delitos é de Ação Penal Pública Incondicionada. Isso significa que a "representação" (autorização) da vítima não é necessária para que o agressor seja processado e punido.
"A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada." (Súmula 542 do STJ)
Na prática operacional, isso gera as seguintes consequências quando a vítima se recusa a ir à delegacia:
- Overruling da Vontade da Vítima: Se os policiais constatarem sinais visíveis de agressão física (lesão corporal) ou presenciarem o ato (vias de fato), eles têm o dever funcional de prender o agressor em flagrante e conduzi-lo à delegacia, mesmo que a vítima implore para que não o façam ou se tranque em casa recusando-se a sair.
- Prova da Materialidade: Embora o depoimento da vítima seja uma peça central, a sua ausência na delegacia pode ser suprida, para fins de lavratura do flagrante, pelo depoimento dos condutores (policiais) que testemunharam as lesões, somado, se possível, a um laudo pericial indireto ou fotos das agressões tiradas no local.
- Ameaça x Lesão: É importante distinguir que, para o crime de ameaça (art. 147 do CP), a lei ainda exige a representação da vítima. No entanto, em situações de flagrante onde há dúvida sobre a escalada da violência, a condução é muitas vezes realizada para averiguação, e a autoridade policial tenta conscientizar a vítima. Mesmo no crime de ameaça, a "retirada da queixa" (renúncia à representação) só pode ser feita perante o Juiz, em audiência específica, e não na delegacia (art. 16 da Lei 11.340/06), justamente para evitar que a vítima desista por coação no calor do momento.
Portanto, em casos de violência física doméstica, a recusa da mulher em se identificar ou registrar ocorrência não blinda o agressor da ação estatal. O Estado age como substituto processual na defesa da integridade física da mulher, entendendo que, naquele momento de ciclo de violência, sua vontade pode estar viciada.
3. Denúncias Anônimas e Violação de DomicílioPublicidade
A recusa em se identificar não ocorre apenas com a vítima direta, mas frequentemente com quem reporta o crime: o denunciante. Em muitos casos, a ação policial é desencadeada por chamados anônimos (via 190 ou disque-denúncia) de vizinhos ou transeuntes que, temendo represálias, não desejam figurar como testemunhas no processo.
Isso gera um cenário jurídico complexo quando a averiguação exige o ingresso em uma residência. A Constituição Federal estabelece a casa como asilo inviolável, mas prevê exceções claras, sendo a principal delas o flagrante delito.
"A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial." (Art. 5º, XI, da Constituição Federal)
A questão central é: uma denúncia anônima, por si só, autoriza a polícia a entrar na casa de alguém à força, especialmente se o morador se recusa a abrir a porta?
A jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ) consolidou o entendimento de que a denúncia anônima isolada não é suficiente para justificar a violação de domicílio. Para que a entrada sem mandado seja lícita, a denúncia precisa ser corroborada por elementos preliminares verificados pelos policiais in loco.
Isso cria duas situações distintas na prática:
- Denúncia Não Confirmada: A polícia recebe uma denúncia anônima de tráfico ou agressão. Ao chegar ao local, tudo está silencioso e não há movimentação suspeita. Se o morador se recusar a abrir a porta ou se identificar, a polícia, em regra, não pode forçar a entrada baseada apenas no telefonema apócrifo.
- Denúncia Corroborada (Fundadas Razões): A polícia recebe a mesma denúncia. Ao chegar ao local, ouve gritos de socorro, barulho de móveis quebrando ou visualiza drogas/armas pela janela. Neste caso, a denúncia anônima serviu apenas como "start" da operação. O que legitima a entrada forçada — independentemente da vontade de quem está lá dentro — é a situação fática visualizada ou ouvida pelos agentes, que configura as "fundadas razões" exigidas pelo STF (Tema 280).
Portanto, mesmo que a vítima (ou o denunciante) não queira se identificar, se os policiais constatarem indícios concretos de crime ocorrendo naquele momento dentro da residência (crime permanente ou instantâneo), o ingresso é lícito. A recusa do morador em abrir a porta pode ser vencida pela força policial para fazer cessar a prática criminosa, resguardando-se a legalidade da prova obtida e a integridade das pessoas envolvidas.
4. A Palavra dos Policiais como Meio de Prova Supletivo
Diante da recusa da vítima em se identificar ou colaborar com a persecução penal, surge uma dúvida processual comum: como o Ministério Público conseguirá provar a autoria e a materialidade do crime em Juízo sem o depoimento da pessoa ofendida? É neste vácuo probatório que a palavra dos agentes de segurança pública assume um papel preponderante e decisivo.
A jurisprudência brasileira, de forma pacífica e consolidada, atribui aos depoimentos de policiais — civis ou militares — a presunção de veracidade e legitimidade (fé pública). Isso significa que, na ausência de testemunhas civis (seja por medo, seja por recusa em se envolver), o relato coerente e harmônico dos policiais que efetuaram a prisão em flagrante é considerado meio de prova idôneo para embasar uma condenação.
"O depoimento dos policiais prestado em Juízo constitui meio de prova idôneo a resultar na condenação do réu, notadamente quando ausente qualquer dúvida sobre a imparcialidade dos agentes, cabendo à defesa o ônus de demonstrar a imprestabilidade da prova." (Entendimento consolidado do STJ)
Para que essa prova seja válida e suficiente, no entanto, ela deve preencher certos requisitos, especialmente quando a vítima não está presente para corroborar a narrativa:
- Coerência e Harmonia: Os relatos dos policiais devem ser consistentes entre si (entre os parceiros da guarnição) e com o histórico registrado no boletim de ocorrência. Contradições graves podem enfraquecer a acusação.
- Corroboração Material: A palavra dos policiais ganha força quando apoiada por provas materiais, como a apreensão da arma do crime, objetos furtados encontrados com o réu, fotos das lesões na vítima (no caso de violência doméstica) ou vídeos de câmeras de segurança.
- Submissão ao Contraditório: O depoimento deve ser ratificado em Juízo, na presença do advogado de defesa e do Juiz, e não apenas na fase policial.
Portanto, a estratégia de "silenciar a vítima" ou contar com sua ausência para obter a impunidade muitas vezes falha. O sistema de justiça criminal está estruturado para que a ação penal pública não fique refém da vontade particular ou do temor de represálias, utilizando o testemunho qualificado dos agentes da lei para garantir a aplicação da norma penal.
Conclusão
A recusa da vítima em se identificar ou comparecer à delegacia cria obstáculos práticos para a investigação, mas não paralisa o poder-dever do Estado de punir, especialmente em crimes graves ou de violência doméstica. Seja através da natureza incondicionada da ação penal, da validade do flagrante baseado em fundadas razões ou da força probatória da palavra policial, o ordenamento jurídico busca equilibrar a proteção dos direitos individuais com a necessidade imperativa de segurança pública e justiça.